Por Bruno Adipietro
Freud encontrava sempre, nas interpretações dos sonhos dos seus pacientes, inúmeras descontinuidades, interrupções, buracos, os chamando de umbigos dos sonhos. Com Lacan, décadas depois, não foi diferente, mesmo tendo ele expandido essa reflexão e unificado essas dificuldades, esses limites, como sendo o encontro dos seus registros psíquicos, chamando-o de objeto pequeno a. Já os matemáticos e físicos se questionam, e muito, sobre o que é e o que acontece no núcleo de um buraco negro. Penso que os psicanalistas podem ajudar os físicos, e vice-versa. Vejamos como.
os buracos negros
Em algum momento dos estudos da nossa física moderna, contando com os constantes avanços matemáticos, começamos a nos perguntar o que seria necessário prum objeto viajar para além dos limites da nossa atmosfera. Seguindo-se sempre as mesmas premissas de método, foram construídas as mais diversas fórmulas pra se calcular o ângulo disso, a quantidade daquilo, e a energia pra aquilo outro. Uma dessas fórmulas, que não vou aqui incluir por motivos práticos, é a que calcula a velocidade mínima necessária pra que um objeto escape à atração gravitacional de um outro. Assim como muitas outras fórmulas matemáticas, esta se utiliza de dados de dois corpos quaisquer, como massa e distância entre si. Mas com essa fórmula, que assim como outras, também é uma ferramenta filosófica, e, sabendo que a velocidade da luz é a maior velocidade conhecida e possível, pudemos nos perguntar o seguinte: será que existem astros no Universo que podem implicar uma velocidade de escape igual ou maior à velocidade da luz? A resposta, inicialmente teórica, foi um retumbante sim: os buracos negros.
Primeiramente tidos como inexistentes e impossíveis, os buracos negros, que assim foram chamados justamente pelos que se opunham a eles, e como forma de chacota, foram confirmados pelas observações feitas na constelação de Cisne, que está a cerca de seis mil anos-luz de distância do nosso Sol. Tal confirmação se deu, mais especificamente, com o objeto então chamado de Cygnus X-1, que deu até nome a uma música da banda canadense, que eu muito aprecio, chamada Rush. Tal objeto, na verdade, é um sistema duplo, composto por uma estrela supergigante, que tem por volta de oito vezes a massa do nosso Sol, e um buraco negro “logo” ao seu lado, que fica atraindo e destruindo matéria proveniente dessa mesma estrela.
Uma informação interessante sobre esse buraco negro, assim como sobre todos os outros, e que também é o alvo da nossa analogia com a psique humana, é o seu horizonte de eventos. Esse horizonte nada mais é do que uma área, uma zona, a partir da qual não se pode mais resgatar a matéria que foi atraída pelo buraco negro. Se uma nave espacial cruzar esse limite, por exemplo, ela não poderá ser jamais resgatada, ou nem desenvolver velocidade suficiente pra escapar à tamanha atração gravitacional, tendo como destino final a aniquilação total e completa. Um pouco dramático? Sim, mas é o que acontece de fato. O que cruza essa linha, o que ultrapassa esse horizonte, jamais é recuperado. E é esse o gancho necessário pra olharmos para os nossos próprios horizontes.
a nossa psique
Quer gostemos ou não, chegamos a esse mundo despreparados, desprotegidos, e desamparados, pra nos lembrarmos da letra freudiana. Mas, assim como qualquer outro animal, e discordando do pensamento de John Locke, quando este diz que nascemos “como uma folha em branco,” nascemos com certas características que vão permitir, por exemplo, que aprendamos a linguagem daqueles que nos recebem e que nos rodeiam. Nascemos como uma folha em branco, sim, mas com muitas linhas, pautas, que vão sendo preenchidas com uma escrita influenciada por todos os lados, e não somente por nossa vontade própria e individual. A influência da linguagem, pra resgatarmos o exemplo já mencionado, e que é o outro objeto de comparação da nossa analogia, não vai apenas nos influenciar, mas vai também nos construir e constituir, pra não nos esquecermos, aqui, da letra lacaniana. Somos seres falantes, seres de linguagem, seres atravessados pelas palavras, pelos significantes; seres estes que Lacan categorizou como falasser. Se assim somos feitos de linguagem, somente assim também serão feitos os nossos limites, e tais limites só serão de um tipo: limites de linguagem.
Os buracos negros são como buracos mesmo, como aqueles que cavamos na terra ou na areia, só que o caminho aberto não é só pra baixo, mas é pra todos os lados possíveis, pra todas as direções desse nosso espaço, com suas tão conhecidas três dimensões. É até difícil de pensar nisso, de descrever essa dinâmica, e é justamente nessa dificuldade de descrever, nessa dificuldade de fazer descrições, o ponto em comum que os buracos negros tem com as nossas linguagens. Assim como eles tem um limite físico a partir do qual nada é passível de resgate ou de fuga, nossas linguagens tem limites lógicos, a partir dos quais uma espécie de muro é erguido. Dou exemplos. É logicamente impossível termos uma ideia verdadeira de um nada absoluto, pois qualquer descrição que possa ser iniciada, já será, ela mesma e imediatamente, alguma coisa. Será, no mínimo, uma palavra, e, sendo uma palavra, seja ela qual for, já deixará de ser absoluto; uma ideia já é alguma coisa.
É estranho, eu sei, mas é lógico. É quase um paradoxo, mas é um muro, na verdade. Tentamos descrever qualquer coisa, mas, no processo, acabamos construindo essa coisa. Claro que essa construção não se dá imediatamente, e que, entre a ideia e a sua construção, sua manifestação, existe um caminho e um intervalo de tempo, carregados das mais variadas dinâmicas, mas uma ideia é o começo de uma coisa, e a coisa mesma não deixa de ser uma outra ideia. É essa a grande característica que nos diferencia dos outros animais, como vai refletir o grande Marx, nas suas obras: o que nos torna humanos é a nossa capacidade de planejar e agir de acordo, e não de agir apenas por puro instinto. O que nos importa, aqui e agora, é o fato das nossas coisas serem intermediadas por ideias, e estas serem compostas, em última instância, por palavras.
no horizonte da linguagem
Pra expor e construir a analogia, e sem mais delongas, vamos nos utilizar da ideia da morte. Somos, assim como todos os outros seres, sem exceção, seres vivos dotados de corpos materiais. Esses corpos, que ajudam a compor aquelas linhas, aquelas pautas, sobre as quais serão escritas as histórias das nossas vidas, são capazes de produzirem as mais variadas sensações, e a nossa psique que lute, como dizem por aí, pra encontrar palavras pra serem encaixadas, ou atreladas a essas sensações, ou pra darem nome a elas. Segundo a escola filosófica do grande Epicuro, a morte não é nada, e não deveria nos causar medo. Por quê? Sendo a morte o cessar das possibilidades sensoriais, ou seja: na morte não há possibilidades de se sentir qualquer coisa, inclusive as sensações da própria morte. Não confundamos, aqui, a morte com as dores de um câncer, ou com a falta de ar de um pulmão inundado: a morte acontece depois dessas e de quaisquer outras sensações. A morte é, em si, o cessar de todas as possibilidades sensoriais. Para que sentíssemos a nossa própria morte, precisaríamos estar vivos, e esta condição gera um paradoxo, um limite. A morte existe nas palavras, nos conceitos, mas não existe na prática. Quando a descrevemos, estamos, na verdade, e sem perceber, construindo o seu conceito, que pode não existir na prática, ou ser bem diferente. Somente os cadáveres existem na prática.
Assim como qualquer corpo que foi aprisionado no horizonte de eventos de um buraco negro, como ilustrado na nossa imagem de capa, a ideia da morte fica indo e voltando na nossa psique, nunca avançando e nem retrocedendo, e sempre mudando de acordo com a época e crenças, como as cores que vemos se movimentar na fina lâmina de uma bolha de sabão. Inclusive, a analogia com a bolha de sabão seria muito melhor se ela não fosse alimentada, inflada de ar, uma única vez. A nossa psique, ao contrário, recebe informações muito mais constantes, por assim dizer, de uma categoria exclusiva de definições chamada de pulsão, que, no meu entender de psicanalista, e nesse contexto, nada mais é do que um instinto revestido de linguagem.
Os nossos instintos surgem de um corpo, e também no corpo, mas quando se encontram com a nossa linguagem, ganham um embrulho, um revestimento, e nos suscitam, por exemplo, a vontade de comer feijoada. É como se a fome, ao surgir numa quartafeira, devesse ser saciada com feijoada, e, ao surgir num domingo, devesse ser saciada com macarronada. Fome, um instinto, mais quartafeira, uma palavra, igual a feijoada, o objeto de uma pulsão. Fome, o mesmo instinto, mais domingo, uma outra palavra, igual a macarronada, o objeto de uma outra pulsão. E vale notar que, no fim das contas, macarronada e feijoada são palavras. Lembrando que, em contextos psíquicos, uma pulsão pode escolher quaisquer objetos, sob a orientação de quaisquer instintos, como aconteceu com uma jovem sueca, que se apaixonou pelo Muro de Berlim: a nossa psique não se pauta numa ciência exata.
a Singularidade psíquica
A nossa psique, a nossa mente, é como uma caixinha de mentiras, pois palavras são mentiras. O que há da palavra caneca no objeto caneca? O hábito é tal que nunca nos perguntamos isso, e, nem muito menos, dessa forma. Mas a pergunta é válida e muito instigante. Assim como existe uma distância entre o núcleo de um buraco negro, a sua singularidade, e o seu horizonte de eventos, existe uma distância entre nossos corpos e nossas psiques, sendo estas compostas por palavras. Sem umbigo e nem pequeno a: estamos na borda, somos a borda. A sensação que tenho, e que gostaria de construir na sua cabeça, é que todos nós, todas as nossas respectivas psiques, nossos eus, ou qual nome tiverem, não estão em núcleos coesos e em algum lugar dentro das nossas cabeças ou mentes. Poderíamos, no máximo, dizer que estamos atrás dos nossos olhos. Mesmo sendo essa uma localização bastante propícia e lógica, sua falha, sua incoerência, está exatamente no fato de apontar uma localização física.
Acredito que esses nossos eus, essas nossas mentes, são os nossos próprios horizontes de eventos, que acabam formando uma ideia de singularidade: enquanto que num buraco negro deva existir um ponto central onde toda a sua massa está concentrada, e com densidade infinita, embora tal opinião não seja geral na própria Física, a nossa singularidade é a própria borda, o próprio horizonte, tendo como centro um lugar completamente vazio, ou seja, não tendo centro. Mais uma vez a analogia com a bolha de sabão se faz útil: ela nada mais é do que uma fina camada de água e sabão, que, envolvendo uma grande quantidade de vazio, se desloca ao sabor dos ventos. Daquele horizonte, o horizonte de linguagem, só podemos extrair palavras e mais palavras, e nada mais, num deslizar infinito de uma palavra a outra, e isso porque, insisto, ele não é composto de outra coisa se não palavras.
Realmente não sei se consegui me fazer entender com todos esses parágrafos, explicações, e argumentos, mas, sabendo que não se pode ensinar nada a ninguém, como nos lembra o grande Galileu, espero ter construído algo na sua mente, nem que apenas uma fina camada de novas palavras. Afinal de contas, temos nossos limites…