Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira
A fim de compreender o que é o homem, devemos antes compreender o real status conferido ao mesmo pela psicanálise. Neste sentido, a psicanálise parte de um antropocentrismo epistêmico, isso porque, em sua concepção, ao tentarmos explicar e entender o homem, em seus variados desdobramentos existenciais, adentramos o questionamento ontológico de todas as outras coisas existentes. Acreditamos que só com o surgimento do homem, bem como, pela montagem de sua organização mental, nos deparamos com o verdadeiro elemento significador daquilo que comumente chamamos de real. Em nossa visão personalista todo e qualquer sentido para existência, só pode emergir da excepcionalidade da vivência subjetiva do homem, ou dito de outra maneira, é nessa singularidade da pessoa humana que sempre encontraremos um sentido para tudo que existe.
Dentro da sua estruturação psíquica o homem expandiu-se para todos os lados; o que inicialmente era só imanência, tornou-se transcendência; a base humana foi além da manifestação fenomenológica passiva, o homem superou todas as coisas e, no seio desta superação, deixou de ser coisa para assumir a dimensão maior e singular de pessoa.
É lógico que sabemos que o homem foi e certamente continuará sendo explicado de diversas formas e a partir de diversas perspectivas, mesmo a psicanálise como a ciência do profundo, não tem como pretensão possuir uma hermenêutica capaz de compreender o ser em sua essência. Ninguém mais do que o psicanalista, sabe que explicar não é sinônimo de compreender aquilo que se explica em suas últimas e mais profundas possibilidades.
O homem é filho do mistério, pois ao ser introduzido no mundo como indivíduo já traz intrinsecamente a dúvida e a incerteza como marca maior de sua evolução, porém, como gênero o homem deixa de ser filho para assumir o papel de pai de todos os mistérios afinal, só é possível e pertinente ao animal humano o questionamento existencial.
A pessoa humana é gerada a partir de duas partes aparentemente excludentes: a soma de todas as verdades e certezas de seus inumeráveis antepassados, bem como, se construiu também pelos erros e incertezas de todos aqueles que pisaram antes em seu incógnito planeta. Por esse motivo, sua natureza essencial fundamenta-se em uma dualidade permanente, ele é construído como humano pela dança dos opostos. Ontologicamente a concomitância das oposições e a soma geral de suas muitas manifestações, criam condições para sua mundanidade[1].
Portanto, ao nos referirmos ao homem, falamos sempre de uma totalidade autotranscendente capaz de um senso agudo de anterioridade pessoal; ao mesmo tempo sua identidade não se sustenta só em uma visão regressiva de si mesmo, pois prospectivamente o homem conseguiu se projetar nas paisagens daquilo que ainda não é, porém, frente a suas múltiplas possibilidades pode vir-a-ser.
Pode-se afirmar, sem dúvida nenhuma, que a gangorra de pensamentos regressivos e progressivos é movimentada pela liberdade que o ser tem de pensar a sua própria vida, e é, exatamente pela via dessa reflexividade, que o homem passa a ser o criador de seu próprio destino, tendo a capacidade de fazer ou não determinada coisa, de cumprir ou não determinada ação, embora independente de suas escolhas, em sua natureza interna já subsistem todas as condições requeridas para diversas formas de ação.
Portanto, como bem ressaltou Sartre (2001), o Ser pela sua expansão consciencial age dentro de umaintencionalidade, sempre que escolhe fazer algo, faz por si mesmo ou por alguém, seus movimentos no mundo sãoteleológicos, ou seja, todo e qualquer movimento do ser se dirige a um objetivo.
Alfred Adler foi o primeiro psicanalista a estudar profundamente esta teleologia da vida e, na sua obra A Ciência da Natureza Humana, escreveu o seguinte sobre tal qualidade humana: “não podemos, portanto, imaginar a alma humana como um todo estático; temos de imaginá-la um complexo de forças dinâmicas… esta teleologia, este lutar por um objetivo, é inato no conceito da adaptação” (Adler, 1957, p.31).
Para Adler, adaptar-se humanamente a vida é ter um compromisso com a mesma, existir está ligado em sua teoria a nossa objetivação pessoal enquanto agimos como seres no mundo.
Um outro desdobramento da teleologia da vivência humana é a perspectividade, fenômeno muito interessante que merece a nossa atenção.
Pelo termo perspectividade, devemos entender, que no contato que o ser tem com os diversos objetos mundanos, existe nessa operação de contato uma incapacidade estrutural de apreender todo o objeto de uma só vez, o objeto por estar além daquilo que o ser é, possui inúmeros aspectos desconhecidos, forçando sempre o observador a um juízo parcial em referência ao objeto. Nesse fenômeno humano de análise objetal o sujeito depende grandemente de sua organização subjetiva, fazendo automaticamente uma releitura do concreto a partir de sua perspectiva particular.
O ser que em sua finitude e contingência tenta entender os diversos níveis de grandezas que o cercam, só pode executar o exame daquilo que é maior que seu eu, por meio de um processo de adequação e reducionismo do real, fazendo isso ele cria uma espécie de mapeamento psíquico interno para controlar conceitualmente o imenso território externo ao seu mundo intrapsíquico.
Nasce, dessa tentativa, essencialmente humana de enclausuramento do real, uma cópia representacional do mundo externo e, a estratificação de vários fragmentos representacionais, acaba por criar uma imagem sistêmica interna que chamamos de cosmovisão.
Embora existam muitos pontos em comum entre os membros do gênero humano, cada comosvisão é essencialmente particularizada pela sensibilidade e acuidade daquele que a organiza em plano individual.
Cada pessoa sente e organiza a realidade de uma forma extremamente arbitrária, suas crenças e modelos representacionais são formados a partir de anseios particulares, e, a principal matéria-prima de tal modelagem reativa é sempre um extrato comum e convencional, oriundo da ação conjuntiva da aculturação e socialização exercida sobre o indivíduo. Assim, em termos gerais, a cosmovisão pessoal será montada por sensações, experiências, idéias e outros fatores estruturais que se somarão criando uma cadeia coerente de interpretação do mundo sensível.
É lógico que até o homem ter alcançado o status de animal racional (sendo só a partir daí, possível a organização lógica do seu mundo psíquico), ele teve que percorrer um longo caminho evolutivo, caminho este que passaremos a examinar a partir de agora.
O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA
Para que possamos prosseguir em nossa análise estrutural do ser humano, devemos somar ao nosso estudo algumas importantes contribuições da Sociologia e da Antropologia. Alinhavando tais valiosas teorizações ao conhecimento psicanalítico, tentaremos por essa junção desenvolver uma espécie de Antropologia Psicanalítica.
Analisarmos o homem em sua mais primitiva fase intelectual é talvez, retroceder a uma esfera de pré-nominação humana, neste estado natural de pré-intelectualidade o homem só era homem em potência, pois em ato era meramente mais um animal irracional.
Usando o conceito de Hegel, nessa fase o animal que se tornaria humano era um elemento natural em-si, sua consciência era restrita a percepção sensível, não ia além das desconexas gravações imagéticas de sua memória. Em seu escopo mais primitivo o homem não conseguia distinguir entre o animado e o inanimado, não existiam projeções antropomórficas nesse período, a estruturação mental achava-se em seu estágio pré-anímico.
A idéia de uma realidade externa, e de uma divisão dualística entre coisas animadas e coisas inanimadas não são dados inatos; na verdade hoje sabemos que tal percepção dual é fruto de um longo trajeto cultural e afigura-se como uma das primeiras conquistas do Homo sapiens.
Interessantemente, o homem começou a ter consciência da vida quando percebeu os limites da mesma, com esse movimento evolutivo ele ganhou uma nova e vital percepção do mundo, nasceu uma consciência externa capaz de inserir em seu bojo a noção fenomenológica da morte.
Pensar sobre a morte lhe trouxe insegurança, furtou-lhe o manto de onipotência, porém, tal percepção o amarrou definitivamente ao real.
Os dados mais recentes da Antropologia e da Arqueologia apontam para o fato de que na idade da pedra lascada (Paleolítico médio que se estende de 100.000 a 35.000 a.C) tem início os primeiros enterros sistemáticos e, com os neandertalenses, uma espécie de culto aos antepassados começa a desenvolver-se.²
Evidentemente, tais descobertas demonstram quão arcaicas são as preocupações existenciais de nossos antepassados primitivos. Foi também estabelecido que no Paleolítico superior, que vai de 35.000 a 10.000 a.C, o Homo sapiens, que sucedeu o Homo de Neandertal, começa a criar os primeiros cemitérios. ³
No entanto, a preocupação do Homo sapiens não ficou circunscrita ao fenômeno da morte, pois as coisas do seu dia-a-dia também lhe reclamavam atenção.
Como essa sociedade em desenvolvimento era essencialmente sustentada pela caça, as preocupações do cotidiano foram registradas em diversas cavernas; dentro deste período temos a feitura das notórias pinturas Rupestres.
A etnologia encara toda produção da arte paleolítica, como prova de uma mutação intelectual que marca um salto quantitativo e estabelece um avanço singular da mente do Homo sapiens em relação aos seus predecessores.
Para a Psicanálise a habilidade dos artistas rupestres, indica uma maior capacidade de simbolização, diferente do povo de Neandertal, que, com os seus ritos mortuários descobriram um sentido arcaico de identidade ligado ao seu corpo, o Homo sapiens vai além da noção primitiva do ego corporal e projeta-se no próprio ambiente por meio da abstração artística.
Com esse avanço intelectual o homem sai do campo das imagens estáticas e desarticuladas, para um outro onde as imagens passam a ter uma devida articulação entre si, produzindo uma linguagem embrionária das cavernas.
Hoje sabemos que a enigmática arte paleolítica não tinha uma missão decorativa, tais gravuras primitivas cumpriam na verdade uma função mágico-religiosa; como os pintores das cavernas viviam num mundo inseguro e perigoso, e a sua sociedade vivia exclusivamente da caça, as pinturas eram simbolicamente um instrumento a mais para se defenderem e controlarem o mundo fora das cavernas.
Temos nessa expressão cultural arcaica um esboço de religiosidade, as cavernas eram lugares sagrados, na realidade cumpriam a missão de cavernas-santuários, onde por meio de uma magia do pensamento, assegurava-se o sucesso da caça e o controle mágico à distância no imprevisível e inóspito ambiente que o homem primitivo estava inserido.
A criação subjetiva interna de fantasias compensatórias de proteção eram essenciais à vida do homem primitivo; afinal ele possuía apenas frágeis armas de pedra para se proteger contra todos os perigos que o cercava.
Em muitas gravuras, pode-se perceber diversos furos produzidos por estocadas de lanças, especialistas acreditam que tais marcas foram produzidas num clima de danças rituais, evidentemente a objetivação de tais cerimônias era a antecipação eidética do que aconteceria na caça verdadeira (Modell, 1973).
É muito oportuno dizer que para nossas mentes modernas, a verdadeira caça acontecia fora da caverna e após o ritual, no entanto, para os nossos primitivos antepassados não era assim que as coisas aconteciam; a verdadeira caça acontecia e era determinada durante o ritual, o símbolo era o real e, o que acontecia fora da gruta santuário era apenas um desdobramento secundário do ritual mágico.
Podemos falar de uma magia projetiva, onde não existia uma clara distinção entre símbolo e objeto, o domínio sobre o animal simbólico equivalia prospectivamente ao domínio exercido sobre o animal real.
O principal mecanismo psíquico envolvido nesse pensamento mágico é a projeção; é como se o homem primitivo quisesse curvar o mundo natural, bem como, moldá-lo pelo seu desejo.
Em uma outra gravura na caverna de Lestrois Frères, podemos encontrar também um outro interessante desdobramento desta arcaica forma de pensar.
Na gruta encontra-se uma famosa pintura denominada pelos estudiosos de O Feiticeiro. Temos ali, a figura de um homem com os órgãos genitais humanos expostos e, em sua cabeça dois chifres enormes de veado, o mesmo é representado com corpo flexionado para frente e as pernas estão dobradas indicando provavelmente um movimento de dança ritualística (Modell,1973). Na frente desse dançarino sagrado, existem diversos desenhos de animais; é como se sua dança divina gerasse esses inúmeros seres, seu ato era o ato de uma divindade que tinha o poder de dar vida.
Ao mesmo tempo em que ele criava todos os animais ele também era um animal sagrado, o homem representado pela gravura do feiticeiro trazia vestígios de tinta que enfeitavam sua testa e nariz, sugerindo uma máscara sagrada de animal. O uso de máscaras sagradas em rituais ainda é muito comum nas chamadas religiões nativas, normalmente os participantes que usam as máscaras cerimoniais pensam transferir para si todas as qualidades do animal representado, temos aí, algo que podemos chamar de magia incorporativa.
Diferente da magia projetiva, que tem seu suporte psíquico na projeção, a magia incorporativa tem sua base no mecanismo psíquico de introjeção.
Na fantasia de incorporação, aquele que representa o objeto transforma-se no próprio objeto, o desejo mágico de fusão é sentido superlativamente pelos participantes como uma união mística, no ambiente mágico dois corpos podem ocupar o mesmo espaço.
Além da fantasia primitiva de incorporação, uma outra prática mágica é bem nítida no exame da arte rupestre, trata-se de uma forte ilusão criadora que denominaremos de magia de reparação.
O Psicanalista Arnold H. Modell (1973), em seu estudo intitulado “Amor objetal e realidade”, nominou tal ilusão de “magia reprodutiva”, nós entretanto preferimos chamar essa atitude arcaica de magia de reparação, pois, embora o termo magia reprodutiva encaixe-se bem no contexto do estudo das pinturas rupestres, ele traz embutido sérias limitações no que se refere ao uso por psicanalistas.
É importante que se diga que o termo magia reprodutiva foi criado inicialmente por dois especialistas em antropologia: Breuil e Obermaier. Os especialistas em questão, perceberam que quando são representados dois animais em uma cena, os mesmos são invariavelmente macho e fêmea, também, em muitas cavernas a cópula entre os animais é o tema preferido do artista rupestre e, é muito freqüente a representação de fêmeas em estado de gravidez. Foi encontrado uma estátua que se tornou célebre entre os arqueólogos, que estampa bisões no ato da cópula, tal ícone de argila demonstra a importância que o ato reprodutivo ocupava na mente de nossos primitivos artistas.
Porém, é importante ressaltarmos que não era o ato sexual em si que era valorizado pelos primitivos, mais sim o poder mágico que os selvagens creditavam ao comportamento sexual. Como a gravidez era uma consequência do ato sexual a cópula era encarada como primeira fase de um processo mágico de recriação. No livro Totem e Tabu, Freud fala da relação ambígua que o homem primitivo tinha com o mundo externo (Freud, 1999).
A relação dual de amor e ódio era à base dos atos externos dos nossos primitivos ancestrais, esse paradoxo intrapsíquico criava uma espécie de oscilação constante, os animais destruídos durante a caça eram recriados magicamente durante os rituais pré-religiosos.
Nessa altura a percepção de perda e de separação já era mais nítida na espécie Sapiens e, os impulsos agressivos começavam a serem limitados e controlados por uma segunda corrente interna de impulsos: os sentimentos amorosos.
Eros começa sua dança cósmica com Thanatos; se o impulso agressivo era a base da superação hominal realizada pelo animal humano, o impulso amoroso era à base de ligação e manutenção necessária para que o homem não se distanciasse demais de suas raízes naturais.
Os dois impulsos serviam a um mesmo instinto primitivo de autopreservação, porém, estruturaram na natureza humana uma bipolaridade constante de fluxo ativo e passivo, gangorra essa que cria permanentemente a dualidade: destruição-reparação. Com o despertar da consciência o homem passou a inserir-se ao princípio da realidade como indivíduo, porém como acrescentou Freud, tal fixação primitiva à realidade veio acompanhada por uma quantidade maior de insegurança interna.
Pela via do pensamento mágico, os primitivos tentavam apaziguar seus muitos medos e receios, as práticas pré-religiosas nativas serviram instrumentalmente como uma medida onipotente de controle sobre os diversos perigos reais.
A ânsia interna de domínio é um desdobramento do impulso agressivo, e na magia a crença no controle a distância dos objetos desejados, tem como base tal ânsia inconsciente. No entanto, como já dito anteriormente, uma outra classe de impulsos se estrutura no homem. Os impulsos amorosos criaram uma ligação afetiva entre o homem e o mundo externo, foi exatamente essa qualidade afetiva primitiva que deu origem ao sentimento de culpa.
Interessantemente, os dados e descobertas, tanto da arqueologia como da antropologia, comprovam indiretamente a teoria psicanalítica de Melanie Klein em referência ao sentimento individual de culpa.
Para a Sra. Klein, a ansiedade primitiva é causada pelos fortes impulsos agressivos do bebê, e em sua teoria, os afetos destrutivos arcaicos são controlados quando a ansiedade amadurece e transforma-se em culpa, tal controle homeostático acontece na posição depressiva.
Segundo as profundas teorizações da Sra. Klein, existe um elemento crucial para que o bebê passe a limitar a sua agressividade inata: os vínculos amorosos de ligação que o infante desenvolve com a sua mãe.
Mais ou menos aos seis meses de idade, o poder mental de síntese do bebê já está desenvolvido suficientemente e, com tal evolução psíquica, a criança, começa a conceber a mãe como uma pessoa.
Com o surgimento de uma relação pessoal com o objeto amoroso primitivo, o bebê refreia o fluxo livre de sua agressividade e, nasce assim, o desejo de continuidade e manutenção relacional. Esta é a base estrutural da ligação amorosa, a partir desse processo a culpa aparece como um afeto reparador que tenta minimizar e refrear uma intenção destrutiva, disposição, que, tinha fluxo livre antes da síntese pessoal surgir.
Porém, o que queremos destacar em nosso estudo é, que, o surgimento do objeto-mãe marca uma grande evolução mental no bebê, bem como, sinaliza uma maior capacidade interna de integração objetal. Semelhantemente, algo muito próximo, ao que descrevemos no bebê, aconteceu coletivamente com os nossos primitivos antepassados.
Hoje sabemos, que enquanto são predominantes às formas animais nas gravuras paleolíticas, o mesmo não aconteceu com as muitas esculturas feitas no mesmo período.
Os vestígios arqueológicos indicam que a forma feminina foi o principal tema escultórico do homem primitivo. Diversas estatuetas femininas, esculpidas em ossos, pedras ou marfins de mamute, foram encontradas por inúmeros pesquisadores (Campbell, 2000).
Um aspecto notável em tais estatuetas, é a valorização da nudez como um símbolo de profundidade natural, foram encontradas mais de cento e trinta esculturas femininas nas cavernas paleolíticas, entre todas essas, apenas duas delas parecem estar vestidas com uma espécie de roupa sacerdotal (Campbell, 2000). Como a grande maioria destas estatuetas foram encontradas em cavernas-santuários, a nudez em questão não deve ser interpretada como algo profano, tais ícones, representam uma arte sagrada e não uma arte erótica das cavernas.
Essas imagens sagradas das cavernas, sempre representam a forma feminina com ancas largas e exuberantes e a obesidade das formas representadas é marca maior desta produção artística. É evidente que tais representações simbólicas demonstram inquestionavelmente que a forma feminina era a materialização da própria potência natural do mundo primitivo.
Como não poderíamos deixar de ressaltar, todas as imagens encontradas destacavam em sua forma esculpitória, seios extremamente exagerados, tal objeto mágico farto não está ausente em nenhuma estatueta.
Essas muitas estatuetas de Vênus no Paleolítico superior representam, uma forma de culto rudimentar, onde a figura feminina é a representação da força mágica de origem, por isso, muitas das esculturas representam mulheres grávidas; parir era um ato mágico de criação, fenômeno peculiar da natureza feminina.
Não devemos esquecer que os homens primitivos viviam presos ao mais profundo temor, as diversas esculturas de deusas-mãe, eram criadas magicamente como imagens protetoras, além de gerarem, protegiam com os seus gigantescosseios o adorador; a mulher era vista não só como uma criadora, mais também como uma mantenedora.
Sem dúvida nenhuma este culto embrionário ao feminino, foi posteriormente ampliado nas civilizações agrícolas posteriores, dando origem a uma forma mais organizada de culto a grande “Mãe Terra”.
OS PRIMÓRDIOS DO PENSAMENTO TEOLÓGICO
Como já frisado em nosso estudo, o culto destinado à deusa-mãe é muito antigo, estima-se que o mesmo remonta pelo menos 20.000 anos a.C.
Entre 10.000 e 6.000 a.C, mudanças climáticas modificaram profundamente as condições de caça, e nos períodos entre Mesolítico e o Neolítico uma nova organização social começou a surgir.
No Paleolítico superior o homem primitivo que era essencialmente nômade, dependia exclusivamente da caça de grandes animais selvagens, no período intermediário chamado de Mesolítico isto começou a mudar e, no Neolítico o sedentarismo já estava solidificado, neste período começou a agricultura e a criação de animais.
Com a formação de aldeias de agricultores e criadores os ritos religiosos passaram a ser promovidos coletivamente e acontecerem de forma mais sistemática, é próximo a este período que as crenças religiosas se cristalizaram. Gradativamente a religião natural e anímica foi sendo substituída por uma religião mais organizada, a religião natural cedeu lugar a religião social.
Paulatinamente a religião natural, que tinha a mulher como seu símbolo maior, foi sendo superada por uma religião artificial, onde o homem assume o lugar de centro fálico do novo sistema religioso.
Essa mudança dos seios protetores para o falo poderoso, também promoveu mudanças na mitologia do homem primitivo; ele deixou de enfocar as plantas e animais selvagens em suas elucubrações míticas, para enfocar um “mundo social etéreo” (mundo imaginário que foi se cristalizando), paralelo ao mundo social real que começava a se desenvolver.
Sua nova vivência comunitária fez com que sua religiosidade servisse a novos anseios, surge à idéia de justiça divina, uma forma fantasística de compensação pela falta de justiça terrena, que, marca predominantemente, as sociedades primitivas.
As antigas religiões Totêmicas são formas intermediárias entre a pré-religiosidade anímica e religião falocêntrica de cunho teológico.[2]
Os indícios históricos são abundantes e bem precisos no que diz respeito ao surgimento da religião patriarcal, certamente entre 5.000 e 4.000 a.C, o pensamento teológico se firmou, com isso uma razão teocêntrica dominou o pensamento humano até aproximadamente 500 a.C.
Inicialmente as mitologias antigas eram transmitidas oralmente, com o surgimento da escrita, os diversos livros sagrados começaram a ser compilado por escribas, é provável que tais coleções sacras, entre 2.000 e 1.000 a.C, já se encontravam parcialmente formadas.
O PENSAMENTO MITOLÓGICO
Na primeira parte de nosso estudo procuramos demonstrar sinteticamente como aconteceu o despertar da consciência sensível no homem. No estágio anímico de sua evolução hominal, o ego e o não–ego, não eram muito bem diferenciados pelo vivente, já no estágio posterior, o teológico, a organização mental do homem evoluiu significativamente, fato que facultou uma melhor estruturação cultural e social.
Foi exatamente no período teocêntrico do pensamento humano, que as maiores tradições mitológicas foram criadas. Inspirados em sua organização social hierárquica, o homem primitivo criou um mundo espiritual onde pululavam miríades e miríades de deuses criados pelas suas fortes elucubrações mentais.
Os diversos mitos que falam de um paraíso perdido, escondem inconscientemente em sua parte oculta e latente, uma referência imanifesta da ruptura hominal produzida pela evolução humana.
Para provarmos esse nosso pressuposto, basta evocarmos e analisarmos um conhecido mito de nossa tradição ocidental: O Paraíso Perdido de Adão e Eva.
Como o supracitado mito é por demais conhecido, tomaremos a liberdade de citá-lo livremente sem nos preocuparmos em tecer uma transcrição literal do mesmo.
No mito Hebraico, Adão e Eva são criados por Deus e postos como zeladores no belo e tranqüilo jardim do Éden.
Os dois moradores são descritos como seres ingênuos e unicamente preocupados em procriarem para encher a terra com seus muitos descendentes. Andavam, de acordo com o relato mitológico, “nus” entre os muitos animais que habitavam o belo jardim.
Para que a paz e a tranquilidade continuassem a reinar, os dois hóspedes só deviam fazer valer uma ordenança divina; os mesmos poderiam comer de todas as árvores do paraíso, com exceção de uma que estava no meio do jardim, ela é denominada no relato mítico pelo nome de “Árvore do bem e do mal”.
O final da história é notoriamente conhecido por todos; Eva é seduzida por uma astuta serpente falante, e, acaba por comer a fruta proibida, essa mulher mítica, segundo relato, não satisfeita com o seu delito, induz Adão a cometer o mesmo crime.
Depois do mal feito, Deus se vê obrigado a expulsar o casal do paraíso, afinal… “O homem se tornou como um de nós, sabendo de agora em diante distinguir o bem e o mal” (Gen. 3:3-6).
Distinguir entre o bem e o mal nesse relato fantástico é um sinônimo de perda da ingenuidade original, após pecarem contra a regra divina, eles se sentem envergonhados de estarem “nus”, fabricam roupas rústicas e vão habitar a partir de sua condenação num lugar fora do paraíso.
Em suas recém inaugurada consciência moral reverberavam as fatídicas palavras: “Tu és pó e ao pó voltarás” ( Gen. 3:19).
Nesse desfecho trágico, o homem ganha forçosamente a consciência de sua mortalidade e, a partir desse momento, passou a conviver com a dor e o sofrimento.
Afinal de contas, que verdades essenciais se escondem atrás deste pueril relato mitológico?
Antes de responder a essa pergunta é importante ressaltarmos, que muitos especialistas ficaram intrigados com o fato, de que relatos semelhantes ao de “Adão e Eva”, podem ser encontrados em diversas culturas, com pequenas e, às vezes, insignificantes diferenças.
Conhecemos e concordamos em parte com a opinião sociológica, que diz que o mito é a tentativa de compreender por um certo reducionismo fatos naturais, como o homem primitivo não tinha bases científicas para examinar o mundo natural, mitologizava fenômenos como a morte, as doenças, terremotos e outras ocorrências naturais.
Porém, ao psicanalisar os mitos superamos esse postulado sociológico, pois se tal opinião é correta até certo ponto, torna-se simplista quando pretende ser toda verdade a cerca dos mitos. A psicanálise descobriu que construir mitos é um mecanismo autônomo de nosso psiquismo, e por detrás de contos aparentemente absurdos, escondem-se sínteses históricas e existenciais complexas.
Psicanalisando a história de Adão e Eva, podemos encontrar dois níveis sobrepostos na narração. Primeiro encontramos um plano micro-existencial que é a discrição metafórica da evolução individual do ser e, depois um segundo desdobramento macro-existencial, que faz referência à evolução hominal que aconteceu com o Homem como gênero, sendo que os dois planos não se excluem, ao contrário se complementam eufonicamente.
Temos no primeiro plano, memórias inconscientes do indivíduo e, no segundo plano existencial, memórias ontogenéticas históricas da espécie humana.
Na interpretação micro-existencial, o paraíso perdido é uma referência inconsciente da vivência infantil, a inocência do casal edênico é a insinuação da indiferenciação egóica e sexual dos primeiros anos do infante. A serpente é um símbolo do elemento fálico de castração que coloca fim ao romance edipiano. Ao sentirem vergonha de sua nudez e se vestirem, aceitam a proibição do incesto, e com isso firma-se internamente o Superego.
Comer o fruto proibido é um símbolo do ingresso no real, pois ao pecarem abandonam o mundo fantástico criado pelas suas elucubrações internas e, desta maneira, adentram o mundo das exigências reais.
O sentimento de culpa que os personagens do drama mitológico desencadeiam após o “pecado original” é uma metáfora inconsciente dos diversos afetos ambíguos que a criança enfrenta dentro da triangulação originária.
Assim, a primeira fase do mito que se sucede antes do pecado, corresponde à fase arcaica de formação e estruturação do indivíduo. A segunda fase nasce com a castração, nesse momento crucial da construção psicoafetiva o infante é inserido no real e, pela intromissão do agente fálico é obrigado a partir deste momento, a respeitar as leis domundo de fora.
Em resumo, o primeiro nível da lenda judaica fala simbolicamente da curiosidade infantil e do desdobramento subseqüente da mesma: a individuação frente ao princípio da realidade.
O segundo nível do mito sai do âmbito do indivíduo e invade a esfera do coletivo, por essa extensão fala-se de um animal desnaturalizado que se desprendeu pela sua hominização de seu mundo original e, acabou por criar um mundo à parte: o mundo humano.
O conteúdo latente do mito de Adão e Eva, no nível que consideramos ontológico, revela implicitamente a transição hominal acontecida nos primórdios da história humana.
É dito para o casal, que eles poderiam comer de todas as árvores do jardim, porém, não poderiam desejar o fruto proibido, pois no mito, tal ato é visto como uma grave transgressão á ordem natural.
Fica claro no mito, que quando o homem resolveu ir além de sua necessidade ele pecou, e a partir deste momento houve uma rebelião contra o estado natural de sua existência fenomênica.
A palavra hebraica para pecado é hhattá’th, e em grego hamartía ambas trazem o significado de errar o alvo, ou seja, o pecado é um desvio de uma ordem original superior.
Como deve ser entendida psicanaliticamente tal enigmática ordem original ?
Antes da consciência do si-mesmo ser atingida pelo homem, ele era apenas mais um animal ajustado ao mundo natural e a ordem original que regia os seus movimentos no mundo, era a ordem instintiva.
Essa primeira fase de maturação hominal pode ser denominada de fase biológica e, sua principal característica morfológica é o determinismo instintivo.
O Ser humano, propriamente dito, só surgiu na fase seguinte; devemos chamar essa fase posterior de simbólica, é nela que temos o nascimento do universo subjetivo humano e, o mundo concreto é reconstruído internamente, a abstração conceitual passa a ter maior valor do que a própria percepção sensível.
Com a estruturação do mundo simbólico o homem ultrapassou suas exigências fisiológicas pautadas na necessidade instintiva e ganhou outro mundo: o mundo do desejo. Portanto, o pecado original é o ingresso do ser no campo do desejo, consequentemente, o pecado mitológico do relato primitivo, fala da mudança de esfera existencial. O homem deixou de ser prisioneiro de um determinismo biológico infalível, para assumir a característica básica de sua essência: a contingência.
Psicanaliticamente, podemos dizer que o homem é filho do pecado, ele nasceu de uma transgressão original que o fez ir além da mera necessidade fisiológica.
O juízo de valor empregado pela religião com referência ao pecado original é falso, pois o pecado original não é um ato criminoso, ao contrário, foi a condição essencial e necessária para o surgimento do ser humano.
A expulsão executada após o pecado é uma referência latente da desvinculação hominal frente ao primeiro estágio biológico. Sair do paraíso é uma metáfora ontológica do rompimento parcial gerado pelo desarraigamento natural promovido pela ampliação consciencial no homem.
Assim, ao “errar” o alvo biológico de sua natureza física, o homem criou uma segunda natureza; transformou-se em um ser desnaturalizado e errante no sentido estritamente biológico, porém, em seu sentido mais amplo foi tal estrutura flexível e impermanente que o lançou na transcendência.
O desejo na vida psíquica é uma bifurcação, aponta para uma aparente necessidade pronta a ser satisfeita por um simples ato, porém nenhum ato é verdadeiramente simples, pois sempre esconde uma atitude inversa e possível no campo da contingência, não existe um porto seguro, mesmo um ato que promova uma satisfação ao ser, será seguido por outras tantas possibilidades, esse infinito deslizar do desejo é o anúncio de uma ausência que marcará indelevelmente a qualquer pretensa presença.
Na natureza o homem é o único animal que tem consciência de sua morte, portanto, seu senso de temporalidade é sempre moldado por uma noção interna de finitude, por conseguinte o mito de Adão e Eva termina com a sentença: Tu és pó, e ao pó voltarás.
A parte final do relato mítico traz embutido implicitamente a última fase da evolução hominal: a fase social.
Ainda dentro do paraíso, Adão e Eva começam a ter sentimento de culpa e de vergonha, quando ouvem a voz deDeus se escondem por causa da sua nudez.
Para entender tal relato antropomórfico precisamos recorrer novamente à teoria, pois, fala-se no texto de um sentimento moral que revela o que chamamos de alteridade.
A divindade em questão deve ser entendida como uma referência ao Superego, e a vergonha que os dois sentem, sugere de forma latente um processo adiantado de estratificação social.
É evidente que esse fragmento do texto, indica uma habilidade maior de formar símbolos mentais, diferente da primeira fase, a biológica, que essencialmente é um estágio não-simbólico, na fase social a estruturação simbólica é tão organizada que permite a internalização plena da linguagem.
Com a categorização e nominação de objetos e sensações, o nível de abstração atingiu um estado de ressonância psíquica, capaz de inserir o outro no campo de nossas múltiplas objetivações existenciais, a partir desse nível o homem passou a viver para o outro e no outro; isso é o que nominamos de alteridade.
Ao saírem do jardim do Éden, o casal passa a apascentar rebanhos e cultivar novas terras, com esse desfecho temos o fim da vivência paradisíaca do famoso casal hebreu.
Como é comum a linguagem mitológica, eventos cosmológicos e antropológicos interagem; certamente isto quer indicar que em um começo sagrado existia uma fusão entre o divino e o humano, os mitos etiológicos sempre são cridos como histórias sagradas que contam a verdadeira versão do princípio de todas as coisas.
As diversas teogonias, cosmogonias e antropogonias primitivas são relatos que falam da irupção do sagrado no mundo natural, tais mitos descrevem as diversas façanhas dos entes sobre naturais que organizaram o caos e produziram aprimeira criação.
Uma outra particularidade notável nos diversos mitos primordiais é a idéia de que todos os eventos relatados nas histórias sagradas aconteceram fora do tempo profano, o tempo mítico das origens é um tempo sagrado, portanto, é um fragmento temporal especial onde os deuses e heróis interagiam ativamente com os nossos ancestrais.
Diferente do tempo sagrado, o tempo comum e profano é o tempo da ação dos homens, todos os mitos primordiais falam de algo ruim que aconteceu e ocasionou um rompimento com o tempo sagrado, assim, o tempo profano é concebido como o começo do sofrimento e da degeneração humana.
É certo que esse sentimento de rompimento arcaico que nos aludem os diversos mitos antigos, é o sentimento inconsciente da insegurança que contraímos ao nos separarmos parcialmente da natureza, e em plano individual, é o sentimento que vivenciamos, ao nos separarmos das vinculações arcaicas que temos com nossos primeiros cuidadores (pais).
No pensamento mítico o tempo profano tem sempre um começo, meio e fim, e ocorre durante um lapso de tempo no cronograma sagrado, a função do mito é anunciar que a pureza primordial que parece estar perdida reaparecerá no final.
Portanto, o mito abriga sempre um ideal prospectivo em reflexo a um ideal regressivo, conta-se o começo e, antecipa-se escatologicamente o fim. Esse lapso de tempo mitológico é uma referência inconsciente ao período de latência vivido por todos os seres humanos, já a promessa adventícia do retorno do paraíso, promana concomitantemente do ideal do ego individual e o ideal civilizatório coletivo. Tais desdobramentos ideais apareceram simbolicamente na figuração romântica de um paraíso recuperado.
Devemos ressaltar ainda a idéia universal de um retorno ao estado primordial, em todos os mitos de origens anuncia-se profeticamente um novo começo, o paradigma mítico é sempre estruturado a partir da promessa de uma recriação.
Como se estabeleceu inconscientemente esse desejo irresistível de retorno e, qual o peso de tal desejo na vivência egóica?
Para que possamos entender como surge psiquicamente o desejo de retorno e a sua importância na vivência psíquica, devemos, estabelecer que a estruturação psíquica arcaica passa por uma série de “começos” e “fins”, até que a criança consiga razoavelmente controlar a sua ansiedade frente à mutabilidade endógena e exógena.
Quando a criança atinge os seis meses de idade, sua constituição egóica está satisfatoriamente bem formada e, próximo desse período de maturação um evento singular se desenvolve.
Segundo as tradições místicas, o caos primitivo precede a organização do nosso mundo material e visível, semelhante ao caos mítico, a mente da criança antes dos seis meses de idade encontra-se dividida num profundo universo confusional interno, e só existe em potência, pois nesse estágio não há a distinção entre ego e objeto.
Ainda citando referencialmente a seqüência mítica, o caos se organiza e surge o mundo fenomênico. Análogo a isso, no segundo semestre da vida do bebê, decorrente de uma maior organização psíquica, surge o mundo objetal.
Para a maioria dos mitólogos, as variadas e primitivas mitologias surgiram da curiosidade admirativa e, tais relatos sagrados são tentativas orais e literárias de lidar com o sentimento de perplexidade ante a soberba aparição do que existe.
Em nível micro-existencial, a criança é tomada pelo mesmo “espanto” frente ao que começa a vislumbrar, e como ápice deste delirante contato, descobre um eu que não-sou-eu. O primeiro não-eu da vida do infante é a mãe e, como primeiro objeto igual e diferente simultaneamente é, a primeira prova vindo do externo, de que existe, o revertério daquilo que eu penso que sou.
O encontro com o objeto-mãe, não é apenas um encontro, é na verdade uma revelação, por isso denominamos de “alterepifania” esse encontro arcaico.
A mãe é a primeira tese psíquica da existência de um outro que descobri a partir de mim, ao mesmo tempo, negá-la como eu, é afirmar meu próprio eu.
Por um certo tempo, a criança fica totalmente identificada como objeto-mãe, e a força de tal união é tão intensa na vivência infantil, que o desejo de fusão e de retorno ao grande útero marca fortemente a relação mãe-bebê.
As fantasias mitológicas de retorno tem sua origem na primeira identificação que o bebê desenvolve com a mãe e, quanto maior for a identificação com o objeto primário maior será na vivência posterior às fantasias regressivas de retorno.
Porém, como tal identificação mórbida é interrompida normalmente no processo de maturação egóica?
Se como afirmarmos a mãe se configura como tese primária da existência, o pai surge no universo psíquico da criança, como antítese daquilo que eu e minha mãe somos.
A díade transforma-se em tríade, o pai que é o outro, que não é o meu outro-eu, faz a criança perceber que nem tudo no universo é “composto” de mãe.
Com a triangulação originária a criança se des-identifica do objeto-mãe, e se identifica com o objeto-pai, para logo depois também des-identificar do segundo objeto. Ao fazer isso a criança não expurga totalmente os objetos primários de seu mundo interno, apenas promove uma síntese com o resíduo interiorizado e, usa tal suporte afetivo para emancipar-se e fixar-se como pessoa.
Podemos dizer, que de uma certa forma, todos os mitos primordiais são rememorações da triangulação originária, por esse motivo encontramos quase sempre a referência a uma tríade originária que atuava no tempo primordial das origens.
Os chineses construíram sua trindade de céu, terra e homem; os hindus compuseram sua trindade de Brama(criador) Vishnu (conservador) e Shiva (transformador); os egípcios de Osíris (pai), Ísis (mãe) e Hórus (filho). Já o Cristianismo inventou uma trindade composta de Deus, Jesus e o Espírito Santo, trindade originária que ocupa o centro do mito cosmogônico cristão.
O desejo inconsciente de retorno é tão ativo e forte em nosso mundo interno, que no pensamento mítico o retorno ao tempo primordial é possível por meio do rito.
Quando examinamos do ponto de vista psíquico os diversos rituais primitivos, logo percebemos que eles não são meras dramatizações para entreter os participantes, o ritual é sempre um retorno à origem, um regresso ao tempo sagrado dos deuses.
Nesse estado alterado de consciência o participante libera o inconsciente durante a cerimônia ritualística e compartilha do poder sobrenatural e, é convidado a recriar o universo.
O estado caótico primitivo é revivido, e a partir do mito o universo ganha uma nova significação.
Através da rememoração mítica faz-se presente uma crença mística de libertação remissiva, que tira o pecado do mundo e purifica o participante.
A respeito desse fato, o mitólogo Mircea Eliade, em seu valioso trabalho intitulado Mito e Realidade , faz o seguinte comentário pertinente ao rito:
“O tempo mítico das origens é um tempo “forte”, porque foi transfigurado pela presença ativa e criadora dos entes sobrenaturais. Ao recitar os mitos reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemente, “contemporânea”, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos deuses ou dos heróis. Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que ao “viver” os mitos, sai-se do tempo profano cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo “sagrado”, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável” (Eliade, 1972, p. 21).
Como é dito no texto supracitado, a pessoa torna-se contemporânea e colaboradora dos deuses, de forma velada, todos os ritos trazem uma série ininterrupta de provas, mortes e ressurreições, no fim dessa série sempre existe um recomeço, ou em termos mais propriamente mítico, uma radical e profunda recriação.
Do ponto de vista ôntico, essa regressão é uma viagem ao nosso passado natural, onde todos compartilhamos de uma ligação total e eufônica com a grande mãe natureza.
Do ponto de vista individual a regressão ritualística ou mítica, nos leva a casa paterna. Na verdade, os deuses e heróis são desdobramentos simbólicos de nossos pais, é por isso que o componente emocional é tão forte e intenso no rito, inconscientemente estamos “reatualizando” nosso passado, ao mesmo tempo, em que, também confirmamos, nossos laços ancestrais. Em suma, o rito traz a tona afetos narcísicos de vinculação regressiva com a nossa história ontogenética e também individual.
Assim, para a psicanálise o verdadeiro primordial é o tempo primordial humano, o tempo mítico paradisíaco é uma referência aos primórdios de nossa história pessoal e, a estampa perspectiva de um paraíso a ser resgatado, é na verdade um reflexo formado pelo ideal do ego.
Tal verdade psicanalítica foi percebida e descrita por Freud da seguinte forma: “… há muito tempo atrás ele (o homem) formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes atribuía tudo que parecia inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se dizer, portanto, que esses deuses constituíam ideais culturais” (Freud, 2002, p.44).
Como Freud bem ressaltou no texto, pela força das fantasias compensatórias, os pontos débeis da existência humana são transformados positivamente pelo pensamento mítico, mitologizar é uma estratégia psíquica que visa manter o controle sobre nossa ansiedade.
Freud considerou a capacidade de mitificar inconscientemente o real, como uma estrutura autônoma de pensamento, onde a lógica tem pouco ou nenhum valor. Assim, o homem sempre mitificou e sempre mitificará aquilo que está fora dele, a criação de uma mitologia reflete a magnitude da potência interna de sintetizar o real e lhe conferir um sentido modelar.
Por isso, diferente da visão cientificista ingênua, que coloca o mito como sinônimo de engano, a psicanálise reconhece o papel estruturante que o mito desempenha na vida mental. O mesmo se configura como um sistema orientacional interno e, baseado nesse recurso fantasístico, o sujeito torna-se capaz de humanizar sua efêmera passagem pelo mundo.
Portanto, ao contrário do mito ser uma história pueril, sem um sentido profundo, o mito foi à primeira maneira psíquica encontrada pelo homem de conferir um sentido humano para as ocorrências fenomênicas. No mito o homem recupera, através de uma narrativa, o seu lugar narcísico no universo, mesmo não sendo, pode assim pensar-se, como o real motivo da existência de todas as coisas.
Na mente dos primitivos, o mito era sempre uma história verdadeira, portanto, como uma história sagrada e digna de fé, o relato mítico é sempre uma forma modelar para as variadas atividades humanas.
O respeito por tais relatos sagrados é facilmente constatado, quando, ao estudar as diversas civilizações antigas, que normalmente só dispunham da tradição oral para transmitir a mensagem mítica, logo descobrimos que todas elas reservavam um papel especial e notório ao poeta recitador, que agia como conservador da memória do povo comum.
É evidente, que ao homem moderno, é impossível ler as diversas cosmogonias e antropogonias como histórias verdadeiras e sagradas, porém, o conceito de sagrado deve ser resgatado por ele.
Etimologicamente as palavras portuguesas sagrado ou santo, equivalem em sua raiz, ao significado dado em diversas outras línguas, a saber: separado, exclusivo, imaculado ou limpo.
Em sentido individual, toda pessoa precisa de uma mitologia pessoal, a mesma age internamente como uma sínteseexistencial, portanto, uma configuração mítica pessoal passa a representar existencialmente algo separado ou exclusivo, pertencente somente àquele que formata o micro-mito.
Uma vez que o mito pessoal é sentido como algo sagrado, em conformidade com tal sentimento interno, o indivíduo ganha um sentido pessoal e intransferível para a sua existência fenomênica.
A sacralização de nossa história pessoal nos leva a conquista da psicocentralização, pois, a verdadeira história do mundo é, verdadeiramente, a nossa história pessoal.
Assim, o pensar mitológico continua a ser útil ao homem moderno, desde que saiamos do seu aspecto superficial e transitório, e aceitemos mergulhar nas águas profundas das significações milenares, sobrepostas e organizadas pelas espessas escamas do tempo.
O mito continua vivo, pois ele nasce do espanto daquele que vive; o mito se alimenta do pensamento e, se é verdade que o mito depende do homem, o homem também depende do mito, pois, sem o mito, não há liberdade para o pensamento. O mito em sua essência é uma vital e revigorante abertura ao simbólico.
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FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Imago, 1999.
[1] Esse termo, foi montado a partir do conceito Heideggeriano de “ser-no-mundo” se refere essencialmente à capacidade da consciência de se relacionar com o mundo.
[2] Sugerimos ao leitor interessado em um estudo mais aprofundado do Totemismo, o abrangente trabalho de Émile Durkhein intitulado: As formas elementares de vida religiosa.