Autor: Prof. Me. Marcos de Oliveira
Seria possível uma aproximação gnosiológica entre psicanálise, antropologia e sociologia? E, admitindo tal avizinhamento, quão frutífera se mostraria essa intrigante intersecção epistêmica?
Tentaremos mostrar nas próximas páginas que, a linha teórica que se celebrizou com epíteto de “culturalismo psicanalítico” é, em suma, a materialização das respostas para as interessantes inquirições propostas.
Antes, porém, de estudarmos propriamente o culturalismo psicanalítico, é importante que se diga, que, desde o início de seus revolucionários questionamentos, Freud ao falar, tanto do indivíduo normal, como, do indivíduo neurótico, mostrou vívido interesse em pesquisar as relações causais entre o indivíduo e a coletividade. Seu famoso conceito de “Superego” é a prova clara da importância que Freud conferiu à estrutura social, na formação do sujeito humano. Porém, seu interesse em buscar as causas das neuroses no “corpo” e não nas relações sociais, é evidentemente claro em seus primeiros trabalhos.
Freud, em sua primeira fase anatomo-fisiológica, deu uma excessiva importância ao “modelo biológico reflexo”, este paradigma foi usado tanto para explicar o surgimento do psiquismo, como também, para entender de forma determinista o funcionamento do inconsciente pessoal.
Esse reducionismo biologizante é facilmente percebido quando Freud fala de uma das teorias mais importante da psicanálise: a teoria psicanalítica das pulsões.
Sobre esse controvertido tema, podemos ler o seguinte em Freud:
…Por “pulsão” podemos entender, a princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do “estímulo” que é produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico. A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma medida de exigência de trabalho feita à vida anímica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedade específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico (Freud, 2002, p. 46).
Podemos perceber no texto supracitado, a importância dispensada por Freud em distinguir entre o “estímulo” e a representação psíquica deste estímulo, que, é nominada por ele de “pulsão”. É dito também, que pulsão é um conceito intermediário entre o físico e o anímico, porém, no trecho apresentado, Freud não explica o que devemos entender por anímico, ou, o que de fato ele queria explicitar conceitualmente quando diz que pulsão é um “representante psíquico”.
Comentando o uso do termo alemão “trieb” e sua consequente tradução como “pulsão” no português, o erudito Luiz Hanns tece o seguinte comentário:
A tradução de trieb é uma das mais polêmicas, devido à extensa gama de significados e conotações do termo em alemão, bem como devido a peculiaridades no emprego freudiano do termo.(…) Em alemão podem-se designar com a palavra trieb diferentes dimensões e formas pelas quais as forças impelentes da natureza podem se manifestar.Tais forças podem, esquematicamente, ser classificadas em quatro níveis de manifestação: da natureza em geral, do biológico nas espécies, no indivíduo da espécie e para o indivíduo. Cada nível também produz em si uma escala que conduz do mais geral ao mais específico.(…) Se utiliza o trieb para aludir à manifestação da natureza no indivíduo como fenômeno fisiológico e somático (os estímulos, os reflexos, a energia circulante etc.) e finalmente para nomear a representação desse conjunto articulado, quando sentido ao nível íntimo e singular pelo sujeito como ânsia, impulso de vontade.(Hanns, 1996, p. 350)
Frente ao comentário acima, fica evidente que (fora à polissemia do termo “trieb”), essa palavra, tem a conotação em Freud, de algo que surge como um fenômeno físico e orgânico e pela sua natureza elástica, se desdobra na mente como uma exigência de trabalho psíquico.
Assim, embora o termo trieb às vezes no alemão se aplique aos nossos “instintos”, Freud em sua teoria pulsional, fala de algo que vai além do somático. Embora o fenômeno pulsional comece ligado aos processos fisiológicos, a pulsão é o instinto que se desnaturaliza e se transforma em uma representação mental, nessa passagem do orgânico para o mental, inaugura-se à estrutura subjetiva do ser.
Infelizmente, ao estudar a formação da subjetividade humana, Freud desconsiderou a influência do meio social na formação de suas “enigmáticas representações”, por isso, não soube diferenciar as primitivas “representações-memória”, das posteriores “representações–afeto”, criadas nas inter-relações desenvolvidas durante a maturação psico-afetiva da infância.
Portanto, o conceito de pulsão como algo capaz de produzir uma “representação mental”, só faz sentido quando a pulsão-representante é capaz de representar o sujeito ao próprio sujeito e, essa auto-representação “para-si”, só é possível quando ultrapassamos o corpo biológico e, descobrimos a partir do “tu”, um corpo preparado pela cultura.
No culturalismo a pulsão não tem nunca a sua satisfação meramente no “corpo físico”, bem ao contrário disso, as representações mentais quando deixam de ser meras memórias sensíveis e, passam a ser a recriação dialética de uma vivência particular e subjetiva, se estruturam num plano teleológico. Em outras palavras, a “anatomia não é o destino das pulsões”, as representações pulsionais são modeladas a partir de uma orientação cultural específica e se direcionam inconscientemente a uma meta cultural.
O questionamento sistemático e profundo das bases ontológicas do ser levou os culturalistas a repensarem o modo pelo qual o sujeito chega a ser sujeito. Ao invés de uma evolução natural de uma coisa inconsciente, que se torna consciente, no culturalismo o infante é inicialmente um predicado e, ao dar-se seu desenvolvimento e assujeitamento pela aculturação, torna-se enfim “sujeito”.
Essa idéia central de “desnaturalização dos instintos”, foi basicamente o motivo inicial do surgimento do culturalismo. Nas próximas linhas abordaremos quais os principais questionamentos dessa escola.
Alfred Adler e o Culturalismo
Ao estudar as neuroses, Freud mostrou particular atenção em entender como se dava o desenvolvimento da criança junto a sua constelação familiar. Embora tenha demonstrado interesse também em conhecer qual o peso da influência social na formação do caráter, nunca considerou as descobertas sociológicas importantes para fundamentar as suas teorias, embora, é justo ressaltarmos que, quando Freud desenvolveu suas principais teorias, tanto a sociologia, como a antropologia, estavam elaborando ainda as suas primeiras conclusões epistêmicas.
O primeiro teórico a demonstrar a importância das relações sociais na formação de nosso senso identitário foi Alfred Adler, embora ele não possa ser alistado propriamente como “membro” da escola culturalista, suas inovadoras “teorias culturalistas” influenciaram fortemente os principais ícones da escola norte-americana de psicanálise culturalista.
Alfred Adler, nasceu em 7 de fevereiro de 1870 em Viena e, faleceu no dia 28 de maio de 1937 em Aberdeen (Grã-Bretanha). Este corajoso austríaco foi o primeiro dos discípulos de Freud a discordar formalmente do criador da psicanálise e a aventurar-se em uma trilha solitária e íngreme (Hanns, 1996).
Na teoria adleriana o homem é concebido como essencialmente um ser social, por isso, o interesse social é inato, a relação cooperativa com os semelhantes é vista por Adler como a base central da sanidade mental (Hall, 1974).
Adler conferiu pouca importância à libido sexual de Freud. Em seus escritos e conferências, não deixava de ressaltar que mesmo a sexualidade era mais usada como manifestação de um impulso inconsciente de poder, do que propriamente com uma objetivação puramente sexual.
Corajosamente ele dessexualizou o ser humano em sua teoria; para ele, mais importante que a sexualidade infantil, era a qualidade relacional vivida pela criança em seu meio.
Os complexos não se formavam por causa da repressão da libido, e sim, a libido sexual era reprimida muitas vezes por causa dos complexos; a verdadeira etiologia dos complexos mentais para Adler, advinham de sentimentos de inferioridade não superados no processo de maturação egóica.
Foi esse valoroso teórico que ofereceu à psicanálise o interessante conceito de “complexo de inferioridade”. Resumindo tal noção, Adler dizia que, o excesso de mimo, ou o seu oposto, a falta de afeto, levavam inconscientemente a comportamentos compensatórios anormais, a neurose e a psicose, eram máscaras que cobriam temporariamente um angustiante senso interno de inferioridade.
Diferente de Freud, que ligava as representações mentais em sua origem a fontes endógenas, Adler como um grande pioneiro, mostrou que o ambiente emocional externo, bem como, as condições materiais do infante, influenciava poderosamente a formação de nossa subjetividade.
Adler foi muito influenciado pela tese sociológica de Karl Marx, por isso, acreditava que as representações ideativas eram um efeito colateral da materialidade ambiental que cercava o infante desde seu nascimento. A ideia de que a consciência é um epifenômeno da vida material, é facilmente percebida num trecho escrito por Marx: “A produção das idéias, representações, da consciência está a princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens linguagem da vida real” (Marx, 1984, p. 22).
Como Marx, Adler via na vida social a base fundadora de nossas ideações. A relação dialética entre o mundo e o sujeito é de suma importância em Adler, para ele, o objeto é significado valorativamente enquanto objeto relacionado a um sujeito, e o sujeito é tal e qual, a partir das relações que tem com os vários objetos mundanos.
Filosoficamente dizendo, Adler não reconhece a existência de um objeto puro, pois ele precisa ser visado pela nossa subjetividade para ganhar significância; nem aceita a hipótese se um sujeito puro, o mesmo, só assume seu papel de “animal significador” ao conferir sentido aos objetos, assim, tanto o sujeito, como também, o objeto, são frutos de uma ontológica relação dialética desenvolvida no âmbito da cultura.
Portanto, de certa forma, todo conhecimento constitui um objeto “visado”, nenhum conhecimento humano é capaz de conhecer o objeto “em si”, puro, como ele é.
Essa visão culturalista levou Adler a perceber que nossas muitas “certezas” e “verdades”, não passam de “ficções condutoras”, sistemas orientacionais criados pelo próprio ser humano. Muitas dessas ficções, inclusive, se prestam ao papel de ideologias de dominação, isso é facilmente ilustrado, citando o comentário de dois grandes historiadores modernos, lemos:
Outra grande diferença entre Adler e Freud estava na visão sobre a mulher. Adler afirmava não haver razão biológica – como, por exemplo, o conceito de Freud acerca da inveja do pênis – para justificar o sentimento de inferioridade da mulher. E afirmava ser esse um mito inventado pelo homem apenas para sustentar o próprio sentimento de superioridade. Qualquer sentimento de inferioridade da mulher resultava dos fatores sociais, tais como o estereotipo da mulher sensual. Adler acreditava na igualdade dos sexos e apoiava os movimentos de emancipação feminina daquela época (Schultz, 2005, p. 400).
Certamente Adler era um homem dotado de uma aguda visão intelectiva, ele estava bem à frente de seus contemporâneos. Indo contra o próprio Freud, ele dissolveu com sua potente teoria, a nefasta aparência de naturalidade da crença da “inferioridade da mulher”; tal pressuposto, era segundo seu viés revolucionário apenas uma criação humana, não parte da estrutura natural da mulher.
Foi Adler quem ensinou a psicanálise, que diferença não é necessariamente nem inferioridade, nem superioridade, diferença é tão somente diferença.
Ao questionar a inveja do pênis como um fenômeno biológico na estrutura feminina, ele lançou base para a idéia de que os “complexos” são montados pela nossa relação com a sociedade, tal visão revolucionária deslocou a importância etiológica dada aos instintos na formação das neuroses, para uma formação produzida em reação aos modelos culturais.
Em seu interessante livro “A Controvérsia Freud-Adler”, o escritor Bernhard Handlbauer, comentando sobre o “instinto agressivo” de Adler, faz notar a evolução conceitual de algumas de suas polêmicas teorias, é dito o seguinte:
O “instinto agressivo” de Adler flui em seus posteriores conceitos de protesto masculino, “empenho pelo poder” ou “empenho pela superioridade” que, no entanto, não mais define instintos biológicos. O significado da sexualidade se perdeu extensivamente na forma de pensar de Adler. Da mesma forma, Freud e seus estudantes não se deram ao trabalho de levar adiante as sugestões de Adler a respeito do relacionamento entre agressão e sexualidade (Handlbauer, 2005, p. 70).
A inveja do pênis que Freud concebia como inata, é transformada em um “protesto masculino”, uma crença de inferioridade criada pela cultura patriarcal. Adler reconhecia a existência de um instinto agressivo, esse em sua essência era neutro, porém, tal instinto quando ajustado a certa cultura, podia ser transformado em uma “ânsia de domínio”, por isso, a vontade que algumas mulheres demonstravam de ser “homem”, era apenas à vontade de dominar e, assumir o lugar social do “macho dominador”.
Essa “vontade de poder”, embora brote do instinto de agressividade, é uma volição existencial orientada culturalmente. Vontade é sempre vontade de alguém por algo e, assim, essa “vontade de poder” sempre se efetivará num quadro orientacional oferecido pela cultura, assim sendo, a ânsia de domínio é fabricada parcialmente nas relações mundanas entre o ego e o mundo social.
Falando da situação da criança no mundo Adler descreve da seguinte forma tal fenômeno:
Desde a mais tenra idade, passa a perceber que existem outros seres humanos capazes de satisfazer completamente suas necessidades mais urgentes, melhor preparados para viver. (…) a criança aprende a dar valor excessivo ao tamanho que habilita uma pessoas a abrir uma porta, ou à força que habilita a transportar objetos pesados, ou ao direito de dar ordens e exigir obediência. Desperta em sua alma um desejo de crescer, de ficar tão forte como os outros, ou mesmo mais forte ainda. Dominar aqueles que vê junto a si faz-se então seu principal propósito de vida (Adler, 1957, p. 45).
Ao ter contato com a realidade externa, o infante é obrigado a crescer e a dominar coisas, a relação qualitativa, bem como, o seu direcionamento teleológico, será construído no seio destas múltiplas relações. Ao se deparar com um ambiente hostil que ressalta pejorativamente sua inadequação humana, ou mesmo ao perceber exigências desrazoáveis da parte dos adultos, a criança pode se identificar com sua pretensa inferioridade e, transformar desta maneira, a ânsia de domínio no seu oposto; se isso ocorrer o infante pode desenvolver um recolhimento na timidez, pode se mostrar excessivamente submisso ou, pode desenvolver uma devoção exacerbada, enfim, assumir uma postura masoquista.
O contrário disso também pode acontecer. Uma criança pode esconder seu complexo de inferioridade por detrás de uma máscara de superioridade, nesse caso desenvolverá uma atitude de dominação em relação às pessoas e as coisas ao seu redor, mesmo o prazer sexual será nesse caso, uma manifestação desdobrada da ânsia de poder.
Tanto o masoquista, de uma forma passiva, como o sádico, de forma ativa, buscam o domínio, tentam dominar a sua própria ansiedade e, ao mesmo tempo, tentam exercer poder sobre os objetos.
O complexado sofre na verdade de uma “neurose de poder”, o poder-ser é confundido com o poder-ter. A ordem teleológica produtiva do para-ser é bloqueada, como imitação da produtividade egóica, o neurótico vive para ter. Aquilo que não consegue produzir no âmbito de sua intimidade, busca produzir e acumular materialmente, para compensar no externo, o que lhe falta internamente.
Com Adler aprendemos que nossos movimentos como seres mundanos, dependerá do tipo de “mundo social” que vivemos, afinal, toda e qualquer ficção condutora mental, depende da cultura que serve como base geradora das categorias teleológicas. Isso foi dito por ele nas seguintes palavras:
A mente não conhece nenhuma lei natural já que o objetivo está sempre mudando. Se, porém, um indivíduo tem um objetivo constante, nesse caso cada tendência psíquica deve sofrer certa compulsão, como se alguma lei natural a influenciasse. Leis que governam a vida psíquica existem – mas são leis feitas pelo homem (Adler, 1957, p.32).
O homem não é determinado pelos seus instintos, seus comportamentos e anseios existenciais são mutáveis, seus desejos nascem da cultura. O homem é o único ser que se determina a si mesmo através de um “outro” que lhe é semelhante, porém, similitude não é igualdade, é na razão crítica daquilo que é desigual, que aprendemos pela força de uma negação estrutural, a nos afirmamos idênticos a nós mesmos. É por esse artifício criado pela cultura que nasce o “eu”.
Em Adler, o contato afetivo do ser com o mundo “real”, depende das “leis mentais” que regem inconscientemente a ação teleológica de cada indivíduo, por sua vez, tais leis serão o resultado da soma relacional entre o eu e a sua sociedade. Por isso, diferente de uma visão fisicista ingênua, o dinamismo afetivo transferencial ganha uma nova conotação na teoria adleriana.
A dessexualização da vivência psíquica foi um grande avanço. Com isso a psicanálise ganhou uma base existencialista para suas teorias, o ser humano deixou de ser pensado como mero fruto de instintos primitivos, ao contrário disso, não é tanto sua base primitiva que o afeta, é a impossibilidade existencial de transformar o primitivo em algo “novo” que de fato faz diferença.
Adler abre campo para pensarmos o eu como uma base flexível, com suas teorias culturalistas ele mostrou que muito do que Freud via como parte constituinte do ser, era na verdade produto de tentativas de adaptação, bem mais do que sua base fixa e biológica, o contato com o “mundo de fora” é o que determina parcialmente o que somos.
Mas afinal, o que verdadeiramente somos?
Seguindo o caminho iniciado por Adler, a escola culturalista norte-americana, desde o começo tentou oferecer uma resposta para a intrigante inquirição existencial em questão. Os teóricos desta escola ampliaram muitissimamente as pioneiras conclusões de Adler, bem como, ofereceram algumas inovadoras propostas.
O Culturalismo Psicanalítico
Com a crescente ameaça de guerra, e, com o fortalecimento do nazismo, a grande maioria dos psicanalistas europeus se retiraram da Europa em busca de maior proteção, com tal êxodo, a Inglaterra e os Estados Unidos converteram-se nos dois maiores centros de estudos psicanalíticos.
De acordo com Clara Thompson, a guerra trouxe muitas limitações; a dificuldade de transporte, a escassez de papel, entre outras dificuldades, impossibilitou uma colaboração ativa entre os dois supracitados centros, essa distância criou base para uma evolução um tanto independente dos dois polos (Thompson, 1969).
Três grandes nomes contribuíram de forma decisiva para o surgimento do culturalismo: o médico psiquiatra Harry Stacy Sullivan, o filósofo social Erich Fromm e a clínica geral Karen Horney.
Sem dúvida nenhuma Fromm, dos três nomes citados, foi o teórico mais significativo, ele influenciou profundamente Horney em suas teorizações. Sullivan embora tenha sido o que menos expôs suas idéias literariamente, manteve uma certa distância epistêmica tanto em relação a Fromm, como também, das teses desenvolvidas por Karen Horney.
Em 1943, Sullivan fundou junto com Clara Thompsom, Erich Fromm, Frieda Fromm-Reichmamm, Janet e David M. Rioch, o William Alanso White Institute, a instituição responsável pelo ensino e divulgação da psicanálise interpessoal (Mijolla, 2002)
Sullivan e Sua Análise Interpessoal
Como teórico, Sullivan foi fortemente influenciado por Freud, bem como, por alguns outros vultos de peso como o filósofo social George Mead, os antropologistas culturais Edward Sapir e Ruth Benedict, o sociólogo Leonard Cottrell, além é claro, do renomado neuro-psiquiatra William A. White (Hall, 1974, p. 159).
Diferente de muitos de seus contemporâneos que, romanticamente acreditavam em um “verdadeiro eu”, como uma essência pura, Sullivan fala de uma essência que será criada como produto de interação com a nossa base social.
Assim, Sullivan descreve a personalidade como “um padrão, relativamente constante, de situações interpessoais periódicas que caracterizam a vida humana” (Hall,1974, p.158).
De uma forma muito original, Sullivan diz que o que chamamos de personalidade é meramente uma “entidade hipotética”, ou seja, o “eu” seria uma ficção aglutinadora de nossas inúmeras máscaras sociais, sendo assim, só podemos entender e estudar o eu a partir do comportamento interpessoal. O eu como uma entidade isolada das situações interpessoais, não passaria de um “fantasma” criado pelas nossas vagas abstrações.
Sullivan por discordar da visão instintivista de Freud, concebe uma base dialética e flexível para o eu. Em suas teorias, o eu não é nunca uma “inteireza”, ou um “bloco de certezas”, bem ao contrário dessa visão estática, Sullivan nos apresenta um dinâmico centro organizador de nosso senso de pessoalidade, núcleo ordenador este, ligado a uma estrutura egóica sempre aberta em busca de novos desdobramentos existenciais.
Portanto, o indivíduo é a soma (e por que não a subtração) de suas relações interpessoais, sua formação identitária é fruto de diversas e variadas identificações; dentro de todos nós por isso, há um discurso montado por “várias vozes” ouvidas e assimiladas durante nosso contínuo percurso existencial, em outras palavras, todo aquele que sustenta sua vida mental às custas de um “monótono solilóquio” é um verdadeiro alienado; o monoideísmo mental gera uma única versão da existência, o que essencialmente atenta contra as múltiplas manifestações do eu.
Essa visão multifacetada do eu, anula a clássica inquirição existencial: quem sou eu? – afinal, tal pergunta pode eclipsar o caminho multidirecional da resposta, a forma tradicional de inquirir, pressupõe uma única e possível resposta. Ao invés de uma unidade fixa e facilmente mensurável, Sullivan oferece em sua proposta epistêmica, um “eu aberto”, com diversas manifestações existenciais possíveis, sua teoria sublinha o aspecto plural e inacabado da pessoa humana.
No contato com o outro, somos construídos e, cooperamos na construção dos outros; o ser humano é um produto das interações sociais, como Adler, para Sullivan, somos essencialmente animais sociais.
As diversas e constantes experiências interpessoais do indivíduo, são tão significantes que, alteram gradativamente o funcionamento puramente fisiológico, mesmo a base orgânica do sujeito é transformada em “organismo social”; a respiração, a digestão, a eliminação, a circulação, entre outras funções básicas do organismo, são levadas a se adaptarem coercitivamente aos modos socializados de funcionamento.
A Empatia no Processo de Aculturação
Para Sullivan todas as metas do comportamento humano se dirigem para duas principais necessidades básicas da existência pessoal: a busca constante de satisfação e a busca cada vez maior por segurança.
A primeira busca tem haver principalmente com as necessidades biológicas do ser, já a segunda, está mais relacionada com sua segunda natureza cultural; Sullivan reconhece o entrosamento constante dessas duas demandas.
O homem busca, conscientemente e inconscientemente, a vida inteira a segurança. Culturalmente a ideia de segurança quase sempre está associada a um forte “sentimento de pertença”, por isso, a segurança egóica é em certo aspecto um sinônimo de ser aceito e de participar de “algo maior”.
Sullivan fala de uma montagem empática do nosso eu, mesmo sem estar cônscio de sua existência pessoal, a criança é desde seu nascimento modelada por pessoas próximas, algumas dessas pessoas são extremamente significantes para sua existência pessoal, particularmente por meio da “função mãe”, são comunicadas muitas das regras e ditames sociais que o infante terá que seguir.
Esse contato empático primitivo é muito importante para a montagem da estrutura pessoal, a ansiedade, a ira, a depressão, entre outras coisas sentidas silenciosamente pelo bebê, lhe trazem uma certa intranqüilidade, essa modelagem negativa indireta, pode trazer dificuldades sérias para a criança afetada.
A doutrinação do ser em formação, portanto, acontece empaticamente de forma indireta ou direta, ao comentar as teorias de Sullivan, o filósofo e escritor Patrick Mullah, escreveu o seguinte sobre o processo empático:
Em virtude da empatia, muito antes que o infante possa compreender o que está acontecendo, ele já se dá conta de algo nas atitudes das pessoas significantes que o cercam. Mais tarde, ensinam-lhe deliberadamente o que está certo e errado, o “bom” e o “mau”. Dessa maneira, os impulsos, as solicitações biológicas do infante, são socialmente “condicionados”, isto é, modelados, tanto como forma de expressão como de realização, segundo padrões culturalmente aprovados (Mullahy, 1969, p.305).
O fenômeno humano da “empatia” é uma abertura para modelagem social, sempre que a criança faz algo aprovado culturalmente, ela terá uma experiência de bem-estar, já a desaprovação, ao contrário, levará o infante a uma sensação de insegurança e de forte ansiedade. Sua consciência em formação, será levada coercitivamente a uma adaptação com a consciência social vigente, os agentes culturais primários sem estarem cônscios plenamente de seu papel de “ajustadores sociais”, educam empaticamente o neófito.
A evolução do eu dentro da visão de Sullivan, corresponde por conseqüência, a uma estratificação do senso discriminativo social, ao se desenvolver, a criança será ensinada a todo o momento a concentrar sua atenção na prática dos atos que suscitam a aprovação ou desaprovação, sua capacidade de formar juízos de valores é fruto dessa interação com os agentes culturais.
Como Sullivan resiste em usar o termo “inconsciente”, ele prefere dizer que os aspectos que suscitam “reprovação”, são “dissociados” do campo mental consciente, normalmente os elementos dissociados não são reconhecidos pela pessoa que os exclui. Os componentes ideacionais dissociados não são facilmente incorporados, como Freud, Sullivan diz que a ajuda terapêutica serve para tornar o paciente cônscio de seus elementos rejeitados.
Visto que a pessoa humana é fruto da cultura, toda as tentativas para mudar crenças geram ansiedade, o psicanalista como uma pessoa “significativa” pode influenciar na ressignificação do auto-sistema do paciente, porém, como o homem é preenchido pela cultura gerada na interações humanas, ao abandonar uma crença, somos levados a substituí-la por uma outra.
Personificações
É chamado de personificação a imagem que criamos de nós mesmos ou dos outros. Para Sullivan a personificação não se refere conceitualmente a uma simples “imagem”, ela é um complexo de sentimentos, atitudes, idéias e sensações que captamos em diversas experiências interpessoais.
Quando uma criança é bem cuidada pela mãe, ela acaba por criar uma personificação positiva, o que faz com que a criança sinta um sentimento de bem-estar. Sem que percebamos, qualquer relação interpessoal que nos traz satisfação, gera uma personificação positiva do agente da satisfação.
No pólo oposto ao descrito, quando uma mãe odiosa, ansiosa, desinteressada ou super protetora, tem contato com uma criança, a mesma cria uma personificação da mãe má, os pequenos detalhes indesejáveis sentidos pelo infante, criam personificações complexas, sua ansiedade, pode ser o alimento de diversas fantasias terríveis; no fundo, quando o senso de segurança é abalado, haverá sempre o aumento do nível da ansiedade de desamparo.
Tanto as personificações boas, como também as más, podem gerar o que Sullivan chamou de “distorção paratática” (Thompson, 1969, p. 194)
Normalmente a imagens que levamos conosco, em nosso mundo interno, não correspondem a uma descrição precisa das pessoas que nos cercam, formamos tais imagens a partir de intenções não muito claras a nós mesmos. Ao sofrermos o aumento do nível de ansiedade, podemos produzir falsas imagens e, assim, projetamos tais produtos nas pessoas, ora personificando “anjos”, ora personificando “demônios”.
Esse conceito de distorção paratática de Sullivan, é muito parecido ao conceito freudiano de transferência.
A Linguagem e o Eu
Não poderíamos deixar de destacar uma das maiores contribuições de Sullivan à psicanálise moderna: as relações sutis entre o eu e a linguagem.
Porém, para que possamos entender bem aquilo que Sullivan quis dizer, quando se referiu a linguagem como um fenômeno essencial na formação humana, é necessário entendermos minimamente esse crucial fenômeno.
A linguagem pode ser definida como um sistema de signos ou sinais, usualmente utilizada para indicar coisas, ela é vital para a comunicação humana, nosso mundo afetivo interno, bem como, idéias e valores, podem ser transmitidos por tal via formal.
Quando nos referimos à linguagem como um “sistema”, estamos dizendo que ela é uma totalidade estruturada, sendo que, tal estrutura tem seus próprios princípios e leis de regência específicas.
Em linhas gerais, a linguagem como síntese, abarca quatro funções primárias em sua estrutura: indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa.
Podemos dizer que a linguagem é vital no contato interpessoal, afinal, a linguagem é um instrumento do pensamento; é por meio dela que abstraímos o concreto e, criamos nosso universo simbólico, nossos variados conceitos são categorias somente possíveis de serem criadas a partir da linguagem.
Quando a criança é inserida no sistema lingüístico, Sullivan diz que se inicia um importante fenômeno para seu ajustamento cultural, ele chamou esse fenômeno de “autística” (Mullahy, 1969, p. 312)
Com esse estranho termo, Sullivan explicita conceitualmente, que à medida que o “infante” progride na assimilação lingüística e formal, uma espécie de alienação se processa, ele se distancia da “coisa em si” e, aprende a pensar não a partir do sensível, mas sim, a partir do “consenso”.
Por isso, conhecer o mundo é na verdade conhecer uma maneira específica de conhecer. Nosso conhecimento não representa a coisa em si, representa apenas os elementos estruturados pelo nosso arbitrário saber.
Podemos dizer que a autística é um aprimoramento na atividade simbólica da criança, pela educação, ela lentamente é levada a prender-se aos padrões de relação da linguagem, ela só será reconhecida à medida que se curva às regras gramaticais impostas pela sociedade.
Inicialmente por causa de sua pouca assimilação cultural, as atividades simbólicas da criança são altamente pessoais, quanto mais a criança é aculturada, mais ela se conforma com a “realidade dos adultos”, esse ajustamento é normalmente premiado, enquanto a falta de ajustamento, quase sempre, traz um castigo.
Sobre esse ajustamento, o já citado filósofo Patrick Mullahy, comenta o seguinte sobre a visão interpessoal de Sullivan:
A criança aprende gradualmente o significado “consensualmente validado” da linguagem – no mais amplo sentido da palavra. Tais significados foram adquiridos por meio de atividades de grupo, atividades interpessoais e experiência social. A atividade simbólica, consensualmente validada envolve um apelo a princípios que foram aceitos como verdadeiros pelo ouvinte. E quando isso ocorre, o jovem adquiriu ou aprendeu o modo sintático de experiência (Mullahy, 1969, p314).
A experiência linguística é vivenciada pela criança como uma experiência de “aceitação”. O modo sintático que o comentarista cita no texto, se refere a um nível de apreensão mental, descrito por Sullivan, onde a criança já consegue elaborar sínteses, sua capacidade de abstração já o torna capaz de entender e transmitir certos conceitos e valores sociais.
Portanto, a razão é um forte instrumento usado para diminuir e controlar a ansiedade, porém, nem sempre tal recurso cultural tem efeito. Sullivan teorizou que sempre que a ansiedade é muito forte, há uma regressão ao modo paratático de experiência, sendo esse modo, uma forma anterior ao modo sintático. Ao dar-se essa regressão, de acordo com o pensamento de Sullivan, esse fenômeno, levaria a desestruturação do plano lógico do sujeito. Esse instigante conceito, lembra muito a teoria do “terror-sem-nome” de Bion, ou ainda, a “regressão as fantasia de corpo despedaçado” de Lacan.
Certamente, muito mais coisas poderiam ser ditas sobre as valiosas teorias de Sullivan, porém, isso não é possível nesse trabalho panorâmico. Em seguida deslizaremos nossa atenção sobre uma outra importante figura do culturalismo: Karen Horney.
Uma Mulher Muito Corajosa
Horney foi uma mulher de muitas qualidades. Viveu numa época onde o falocentrismo psicanalítico predominava. Por isso, sua corajosa postura intelectual questionadora, foi vital para o desenvolvimento da psicanálise.
O próprio Freud como criador da psicanálise, defendia uma visão estritamente falocêntrica. Em seu “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, definindo a natureza essencial de sua “libido sexual”, escreveu:
A atitude auto-erótica das zonas erógenas é idêntica em ambos os sexos, e essa conformidade suprime na infância a possibilidade de uma diferenciação sexual como a que se estabelece depois da puberdade. Com respeito às manifestações auto-eróticas e masturbatórias da sexualidade, poder-se-ia formular a tese de que a sexualidade das meninas tem um caráter inteiramente masculino. A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de “masculino’ e “feminino” um conteúdo mais preciso, seria possível defender a alegação de que a libido é, regular e normativamente, de natureza masculina, quer ocorra no homem ou na mulher, e abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher (Freud, 2002, p.96).
Freud acreditava que a libido sexual era uma energia masculina, isso fazia da própria sexualidade, um desdobramento dessa potência masculina. Assim, a masculinidade era natural, já a feminilidade era uma decepcionante descoberta.
De acordo com a teoria freudiana, tanto o menino, como a menina, passavam pela angústia de castração; no entanto, o complexo de castração era positivo no caso do menino, pois, ao sofrer a angústia da castração ele superava o complexo de Édipo. Bem ao contrário disso, na menina a angústia de castração gerava um sentimento de “incompletude”. A inveja do pênis era o produto final da castração no caso da menina, ao invés de se livrar do Édipo, ela ficava presa a uma promessa inconsciente que a fixava no Édipo.
Em outras palavras, no caso da mulher, a feminilidade era uma descoberta “negativa”, a ideia de castração era ligada ao seu pênis incompleto (clitóris). Na teoria clássica a menina inconformada com sua falta de sorte, culpava a mãe por ter vindo ao mundo tão mal equipada, por fim, se identificava com a figura paterna e, se recolhia em sua feminilidade, com isso ficava a vida inteira aguardando um “pênis”. Com a demora da concretização da promessa peniana, deslocava com o tempo seu desejo para um outro objeto substituto: um bebê.
Psicanalistas célebres aceitaram por muito tempo essa descrição freudiana, como a única via para entender a psique feminina, e, psicanalistas como a polonesa Helene Deutsch, além de aceitar tais pressupostos, ampliaram tal visão machista. Essa influente psicanalista baseada na idéia da passividade natural da mulher, concluiu que tal passividade era um sinônimo de um “masoquismo” estrutural, por isso, as dores do parto eram para a mulher, um verdadeiro orgasmo (Mijolla, 2002).
Também, o psicanalista húngaro Sandor Ferenczi, ratificou a opinião de Deutsch, dando a idéia que o parto como concretização da promessa edipiana, era um momento especial de puro prazer orgástico (Sayers, 1992).
Horney corajosamente questionou a veracidade dessas idéias, para ela essas crenças eram meras fábulas criadas pelos homens. Evidentemente, não era a originalidade a marca maior dessa postura questionadora, afinal, Adler já havia levantado suspeitas sobre a constituição inata da “inveja do pênis”, o que talvez Horney tenha feito de melhor, foi a sistematização de uma teoria contrária.
Inicialmente Horney se apoiou em um pressuposto biológico para provar que, o que designou de “feminilidade inata”, não dependia do complexo de Édipo.
Horney afirmou que a ligação da menina com o seu pai no Édipo era um desenvolvimento normal e diretamente ligado à feminilidade inata (Ceccarelli, 1990).
Ainda nessa sua primeira fase trabalhando com o paradigma biológico, Horney não conseguiu desmentir algumas fantasias que pareciam apontar para a existência de algo próximo a inveja do pênis, o que fez por volta de 1926, foi apenas contra argumentar de uma forma um tanto desesperada, dizendo que; se a inveja do pênis era um fato psíquico, também não faltavam fantasias que apontavam para uma “inveja masculina” do ventre” (Sayers, 1992).
Já numa segunda fase mais madura, a partir de 1930, seu direcionamento teórico mudou sensivelmente. Gradativamente sua visão biologizante foi sendo enfraquecida, Horney reformulou suas teses iniciais e adotou o paradigma culturalista para entender alguns fatos psíquicos.
Nesse momento, sua defesa se aproximou ainda mais das teses defendidas anteriormente por Alfred Adler, ela começou a conceber a inveja do pênis, como uma inveja fálica referente ao lugar privilegiado que o homem assumia no sistema patriarcal.
Em seu famoso livro “Novos Rumos na Psicanálise”, Horney apresenta suas reformulações teóricas nos seguintes termos:
Tem sido dito que as mulheres adultas podem expressar, explicitamente, ou representando-se a si própria em sonhos com um pênis ou com um símbolo fálico, certo desejo de serem homens. Podem também demonstrar desprezo para com as mulheres e atribuir certos sentimentos de inferioridade que possuem ao fato de serem mulheres, ou, ainda, tendências de castração podem-se manifestar ou se expressar em sonhos, clara ou disfarçadamente. Estes últimos fatos, ainda que a sua ocorrência esteja fora de dúvida, não são tão freqüentes como certos trabalhos analíticos sugerem. Além disso, só ocorrem com mulheres neuróticas e comportam uma interpretação diferente (…) aparecem aqui os fatores culturais. O desejo de ser um homem, como assinalou Alfred Adler, pode ser a expressão de um desejo de possuir aquelas qualidades ou privilégios que, na nossa cultura, são considerados como masculino: força, coragem, independência, sucesso, liberdade sexual e direito de escolher um companheiro (Horney, 1966, pp.90-91).
Após concordar que algumas mulheres de fato demonstram uma inveja fálica, Horney diz que tal ocorrência é um sintoma neurótico, não um traço comum da constituição feminina.
Depois em sua argumentação evoca Adler, e junto com este, diz que a inveja do pênis é na verdade uma inveja construída culturalmente a partir da discriminação que a mulher sofre em nossa sociedade. Querer ser um homem, é uma forma simbólica de dizer que gostaria de ser valorizada por ser também humana. Porém, Horney não esgota sua contra argumentação nessa única possibilidade. Ampliando sua divergência ela continua:
É necessário levar em conta a possibilidade que o desejo humano de ser homem seja o disfarce assumido por uma ambição recalcada. Nas pessoas neuróticas, a ambição pode ser tão destrutiva a ponto de ficar impregnada de angústia e necessitar ser recalcada. Isso é verdade tanto para o homem quanto para a mulher, mas, como uma conseqüência da situação cultural, na mulher uma ambição destrutiva recalcada pode-se expressar por meio do símbolo, comparativamente inócuo, do desejo de ser homem (Horney, 1966, p. 91).
E, ainda sobre a idéia freudiana de um masoquismo estrutural na mulher, idéia essa, tão ardorosamente defendida por Helene Deutsch, Horney escreveu:
Muitas mulheres neuróticas têm idéias masoquistas a respeito do ato sexual. Acham que a mulher é uma vítima dos desejos animalescos do homem, que ela deve sacrificar a si mesma e que este sacrifício rebaixa-a. Podem mesmo engendrar fantasias a respeito de serem fisicamente ofendidas pela cópula. Algumas mulheres neuróticas desenvolvem fantasias de satisfação masoquista através do parto. O grande número de mães que assume o papel de mártires e que, continuamente, estão lembrando o quanto se sacrificam pelos seus filhos, pode certamente servir como prova de que a maternidade é capaz de oferecer na satisfação masoquista para as mulheres neuróticas. Há também moças neuróticas que fogem ao matrimônio porque imaginam que serão escravizadas e maltratadas pelo futuro marido, Por fim, as fantasias masoquistas a respeito da função sexual da mulher podem contribuir para rejeição do papel feminino e para a preferência pelo masculino (Horney, 1966, p 93).
Novamente Horney concorda com o fato de existirem mulheres que vinculem sua feminilidade com traços masoquistas, porém, ela diz que isso é uma manifestação neurótica, não uma tendência normal da constituição feminina, portanto, sua concordância é parcialmente, e, totalmente contrária à visão generalizante de Freud e Deutsch.
Para Horney, a ligação biológica entre os sexos opostos, é mediado por diversos anseios culturais inconscientes. O domínio patriarcal levou a mulher a uma supervalorização do amor, por muito tempo à única forma da mulher se realizar era sendo “mãe”, isso fez com que o sacrifício de sua individualidade fosse sentido muitas vezes como uma “ferida necessária”, a expressão plena desse fato é a máxima do senso comum que diz que: “… ser mãe, é padecer no paraíso”.
A alteração paradigmática introduzida por Horney em seu próprio pensamento, fez com que ela se aproximasse mais ainda de Adler, como esse grande teórico, ela foi levada a conceber a “meta masculina” como uma “ficção condutora”. Suas teorias ganharam cada vez mais leveza, ao mesmo tempo em que ficaram mais consistentes. Horney, com o tempo, descobriu que talvez o maior motivo de sustentação das neuroses, é a nossa tendência inconsciente de naturalizar aquilo que é cultural.
As Bases Culturais das Neuroses
Ao questionar a razão biológica da inveja do pênis, Horney foi levada a questionar a legitimidade de toda teoria instintivista de Freud. Com o tempo, passou a duvidar particularmente das bases biológicas das chamadas neuroses, desse questionamento sistematizado, surgiu uma profunda e interessante teoria explicativa.
Em seu livro “A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo”, Horney nos oferece em termos bem simplificados, como distinguir a maneira normal e a neurótica de reação, tal distinção é muito importante, até porque, para entendermos a base etiológica das diversas neuroses, é necessário antes caracterizar o chamado “tipo neurótico”. Ela começa sua distinção dizendo:
As condições de vida de toda cultura dão lugar a certos medos. Podem ser ocasionados por perigos externos (natureza, inimigos), pelas modalidades das relações sociais (incitamento à hostilidade devido ao recalque, injustiça, dependência forcada, frustrações), por oposição a tradições culturais (medos tradicional de demônios, de violação de tabus) independentemente de como se hajam originado. Um indivíduo pode ser mais ou menos sujeito a esses medos, porém, de modo geral , é licito presumir que eles atuem sobre todos os indivíduos que vivem numa dada cultura e a que ninguém pode escapar. O neurótico, contudo, não só participa dos medos comuns a todos os indivíduos de sua cultura, como também, por causa de circunstâncias de sua vida individual – que, todavia, estão mescladas com as circunstâncias gerais – tem medo que se afastam, quantitativa ou qualitativamente, dos peculiares aos padrões culturais (Horney, 1972, p. 14).
O medo mórbido e paralisante do neurótico é uma reação desproporcional em referência ao estímulo, seu medo é apenas atualizado no “real”, não é causado pelo mesmo. O indivíduo normal teme reativamente, porém, não teme compulsivamente, seu medo acaba onde começou.
Muito interessantemente, Horney destaca que nosso contato com a existência é fortemente mascarado pelo medo. Sentir medo, portanto, está intimamente ligado ao nosso ato racional discriminativo.
O medo neurótico, bem diferente dessa ativação discriminativa é irracional. Assim, o conteúdo de tal medo é sempre uma “mescla” de sentimentos, por isso, o senso discriminativo é praticamente anulado.
Uma pessoa normal, embora sofra os muitos medos culturais, potencializa sua coesão egóica em defesa de sua vida, sua capacidade interna é usada na superação das dificuldades existenciais.
O neurótico se perde em seu sofrimento, é muito comum o indivíduo neurotizado idealizar a “morte” como uma solução para os problemas da vida, na neurose sempre existe uma discrepância entre a potencialidade interna e as realizações do sujeito.
As defesas normais do ego visam elaborar uma nova maneira de se relacionar com a existência, são em si, o germe de um novo momento, de um novo contato com o real. O que chamamos de “defesas maníacas”, se prendem ao antigo, levam o neurótico novamente ao passado, infelizmente, ao invés, dessa viagem regressiva reorganizar a vivência presente do sofredor, só o leva a sofrer pela “segunda vez”, aquilo que sofreu no passado.
Frente a essas diferenças básicas, entre o normal e o anormal, Horney considera a neurose como uma forma mal sucedida de desenvolvimento, por isso, o neurótico evolui em seu quadro deletério, porém, não se desenvolve como ser humano.
A natureza compulsiva das tendências neuróticas, seriam uma reação maníaca impetrada contra a ansiedade inconsciente. Como Adler, Horney também acreditava que uma vivência afetiva insatisfatória na infância, tinha um grande peso na configuração da personalidade neurótica.
Falando sobre a gênese dessas tendências diversas no ser humano, ela escreveu:
Elas se formam bem cedo na vida, graças ao efeito combinado de certas influências do temperamento e do ambiente. O fato de uma criança tornar-se submissa ou rebelde, sob a pressão coercitiva dos pais, depende não só da natureza da coerção, mas igualmente de certas qualidades, como o seu grau de vitalidade e a sua relativa brandura ou resistência natural. (…) Em quaisquer condições,a criança será influenciada por seu ambiente: o que interessa é saber se esta influência tolhe ou favorece o crescimento. E o que prevalecerá vai depender sobretudo do tipo de relacionamento estabelecido entre a criança e seus pais ou outras pessoas que a rodeiam, inclusive outras crianças da família. Se a mentalidade no lar é de cordialidade, respeito e consideração mútuos, a criança poderá crescer sem obstáculos (Horney, 1984, pp. 35-36).
Como é visto no texto acima, diversos fatores influenciam na construção de uma personalidade, porém, todos esses fatores estão ligados ao relacionamento do ser com o seu ambiente. O culturalismo de Horney descarta “influências inatas”, o drama edipiano é relido como uma das ocorrências existenciais significativas, e não como um mito ontológico intrínseco ao ser.
Influenciada pela hipótese freudiana de um inconsciente filogenético, a escola inglesa, até mesmo chegou à fantástica teoria das “fantasias originárias”, formas filogenéticas que afetavam instintivamente a criança desde seu nascimento, Melanie Klein se refere a tal postulado teórico da seguinte forma:
As teorias sexuais formam a base da maioria das fixações sádicas e primitivas, Freud nos ensinou que a criança obtém um certo saber inconsciente, aparentemente de forma filogenética. Este inclui o conhecimento sobre a relação sexual entre os pais, o nascimento das crianças, etc.; contudo trata-se apenas de um saber vago e confuso (Klein, 1996, p. 204).
Se fiando na obscura e prematura teoria de um enigmático inconsciente filogenético, Klein defende uma exótica teoria sexual de cunho inatista, de acordo com seu pressuposto, algumas das deletérias afecções do psiquismo são causadas por esse “saber vago e confuso” que pré-existe na mente infantil. Honestamente dizendo, muito mais “vago e confuso” é essa concepção pansexualista, é evidente que essa crença pueril, foi sustentada por causa da idéia de que o complexo de Édipo é a base nuclear das neuroses, das perversões e psicoses, ou seja, os problemas existenciais, não são de fato existenciais, são verdadeiramente sexuais.
Essa visão reducionista foi fortemente questionada por Adler. Como já vimos no presente estudo, algumas propostas inovadoras de Adler foram retomadas pela escola revisionista americana e, acreditamos que o culturalismo tem o mérito de ter aprofundado tal discordância, ao mesmo tempo em que, foi capaz de oferecer uma organizada contra-teoria. É possível dizer que a partir da visão culturalista, uma base epistêmica pautada em um paradigma existencialista, foi proposto para substituir o velho paradigma anatomo-fisiológico do começo da psicanálise.
Nesse novo paradigma existencialista, todo e qualquer conhecimento do sujeito é construído empiricamente pela sua mundanidade. Para o indivíduo “ser”, necessariamente terá que “fazer”, sua ação mundana dialética produz o conhecimento, ao mesmo tempo em que o conhecimento produzido, também, produz o produtor.
Não existe um conhecimento sem intencionalidade, tanto em nível inconsciente, como, em nível consciente, todo saber é fruto da cultura. Os diversos “conhecimentos” culturais visam sempre um objetivo maior: adequar as ocorrências particulares e sem sentido, na estrutura de uma lei ou ordem teleológica ideal.
Tanto em Horney como nos demais culturalistas, não é um complexo de Édipo de teor sexual, que, serve como base para o desconforto neurótico, são as vivências desfavoráveis no sentido existencial que, infelizmente, farão uma criança se defender de maneira maníaca.
Falando das razões dos traços neuróticos numa criança, Horney disse:
Eles representam um modo de vida imposto por circunstâncias desfavoráveis. A criança sente-se forçada a desenvolvê-los a fim de sobreviver a sua segurança, seus medos e sua solidão; todavia, eles lhe dão uma noção inconsciente de que tem de aferrar-se a todo custo ao caminho traçado, pois do contrário sucumbirá ante os perigos que a ameaçam (Horney, 1984, p. 37).
Os traços neuróticos não são “herdados”, são construídos. Os mesmos equivalem existencialmente a uma leitura empobrecida do mundo, são sistemas orientacionais. Mesmo os sintomas neuróticos mais esdrúxulos, são formas teleológicas que seguem inconscientemente uma intencionalidade defensiva, a neurose é a cultura da “des-cultura”, é o grito desesperado por uma fusão natural perdida em algum momento do passado.
Embora, em sentido comparativo, as críticas sociais feitas por Horney, fossem normalmente mais brandas do que as produzidas por Fromm, ela não deixou de denunciar de forma muito contundente que a verdadeira causa do desconforto neurótico, reside na incapacidade parental de reconhecer e atender às necessidades da criança. Ela não deixou de demonstrar na maioria de seus livros que, essa deficiência afetiva, gerava diversas formas reativas, como a permissividade educacional e a superproteção.
Uma criança criada em um ambiente de desequilíbrio emocional, tenderá sempre a criar uma auto-imagem discrepante, pode se ver como um verdadeiro “deus”, ou no pólo contrário desse delírio, se sentir como um reles “demônio”. Horney acreditava que a única forma de curar uma neurose era modificando as bases sociais que a geravam. Sobre essa condição de formação ambiental ela escreveu:
O conflito entre o indivíduo e o ambiente não é tão inevitável quanto Freud supunha. E, quando aparecem tais conflitos, as suas causas não residem nos instintos do indivíduo, mas no fato de o ambiente inspirar temores e gerar hostilidade. As tendências neuróticas que, em consequência desses conflitos, os indivíduos desenvolvem, às vezes, proporcionam-lhes um modo de enfrentar o ambiente e, em outros, favorecem o desenvolvimento de conflitos. Portanto na minha opinião, os conflitos com o mundo exterior não constituem, apenas, as bases das neuroses; eles constituem, isso sim, uma parte essencial das dificuldades neuróticas (Horney, 1966, p. 156).
O que é citado nesse último fragmento de Horney é algo muito importante para a psicanálise moderna, afinal, o psicanalista bem atualizado deve deixar de olhar apenas para a corporeidade pulsional de seus pacientes e, em sentido mais amplo, prestar a detida atenção na dinâmica familiar, em seus relacionamentos profissionais, na sua vivência amorosa, em suas crenças condutoras, enfim, deve ter uma visão holística sobre o universo relacional do consulente.
Diferente de uma teoria fechada e determinista, Horney é bastante otimista, semelhante a Adler e Sullivan, ela encara a personalidade como o resultado de diversas relações intrapsíquicas e extrapsíquicas, sendo assim, ao mudarmos nossa maneira de atuar existencialmente, podemos alterar grandemente, tanto a nossa história pessoal, bem como, influenciar positivamente outras histórias que se formam em nosso entorno.
Prof. Marcos Oliveira
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